São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 2006

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Mestiçagens

"AS IDENTIDADES são como os dedos da mão. De quando em quando, há um desses dedos que incha e não deixa ver os restantes dedos. Houve dias que fomos mais de uma etnia, de uma religião, de um clube. Mas a mão continua sempre sendo composta por múltiplos dedos." São palavras do escritor moçambicano Mia Couto, um filho de portugueses nascido na cidade colonial de Beira, publicadas em "Pensatempos: textos de opinião" (Lisboa, Caminho, 2005). Moçambique, mais que Angola, construiu uma identidade nacional na guerra de libertação, entre 1960 e 1975. Contudo, sob os impactos da globalização e da atuação de entidades filantrópicas internacionais, ONGs e elites internas emergentes, o país enfrenta dilemas identitários inesperados: "Sou um branco moçambicano ou um moçambicano branco? Sou um indiano africano ou um africano indiano? Sou um muçulmano moçambicano ou vice-versa?". Na reserva de caça dos demagogos habitam, também, identidades "prévias" recondicionadas pelo multiculturalismo: macuas, macondes, mulatos... Mia Couto teme as políticas identitárias, a busca de uma "africanidade" essencial, o mecanismo redutor que amputa todos os dedos da mão, com exceção do dedo "puro". Na África, o solo no qual brotam esses empreendimentos foi arado por narrativas míticas anteriores, que desenharam os contornos de um paraíso perdido pré-colonial, ocultaram os nexos internos do tráfico de escravos e investiram na culpabilização do estrangeiro. A fábrica de identidades unívocas retoma o fio da meada, mas agora, tanto tempo após as independências, o "estrangeiro" deve ser redefinido como um "infiltrado": o indivíduo da etnia, da cor ou da religião "errada". Cultura é intercâmbio: "mestiçagens", na expressão de Mia Couto. Em Angola, a ofensiva identitária precedeu a Fundação Ford e as ONGs, entremeando-se com a guerra civil. As forças guerrilheiras da Unita, de Jonas Savimbi, baseadas no interior, definiram o inimigo como sendo os mulatos de Luanda, que falam português e participaram das lutas de libertação nacional nas fileiras do MPLA. A cruzada dos "pretos" contra os não tão pretos invertia os sinais da hierarquia racial criada pelo colonizador, mas consagrava o conceito envenenado de raça. "Precisamos de um modelo de nação que não privilegie ou exclua alguém na base da raça, cor, credo ou origem. Desconfiemos, sim, dos que sugerem cruzadas à procura da pureza ou da autenticidade". No Brasil oficial, que inclui uma vasta intelectualidade cortesã, Mia Couto recebe muito menos atenção do que merece. É que ele tem a cor "errada" e, pior ainda, idéias "inoportunas"...

magnoli@ajato.com.br


DEMÉTRIO MAGNOLI escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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