São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES As elites e os contratos
JOAQUIM FALCÃO
E, no entanto, a busca da justiça social pode, às vezes, significar violação de contratos. Para que isso não ocorra, é necessário que esteja fundamentada em normas jurídicas válidas e seja efetivada por autoridades competentes dentro do devido processo legal. Quando assim ocorre, inexiste violação. Os exemplos são muitos, inclusive internacionais. A defesa de seu programa contra a Aids pelo Brasil foi interpretada pelos Estados Unidos e pelos laboratórios como uma quebra do direito de patente. Uma violação de direitos. Ledo engano. Havia -e há- outra norma internacional que justifica e legitima uma interpretação em favor da justiça social. Dizia o artigo 31 do Trips (Acordo sobre Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual - OMC) que um país pode autorizar outro uso da patente em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, ou ainda em casos de uso público não-comercial. Não houve, pois, violação de direitos. Apenas a nova interpretação, "socially-oriented", que limita o direito de patentes tendo em vista valores sociais relevantes, ganhou da antiga interpretação, "capital-oriented", que pretendia o direito de patentes como direito absoluto. Nenhuma das duas são violações de contrato. Ambas são legítimas e legais. No confronto das interpretações, pulsa a disputa recôndita pelo poder. Assim, também, inexiste violação de contratos se existe previsão constitucional para não os cumprir. O presidente Bill Clinton, por exemplo, assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, mas o Congresso norte-americano o desautorizou. Não referendou sua assinatura. Também aqui não houve violação do compromisso firmado pelo presidente dos Estados Unidos. O Congresso americano tem constitucionalmente o direito dessa recusa. Quem com Bill Clinton negociou sabia disso. Assim como quem com o Brasil negocia deve conhecer nossa Constituição e deve saber que nosso Congresso e nosso Judiciário poderão, em relação aos atos do Poder Executivo, ter interpretações diferentes. O que é natural dentro da separação dos Poderes e da democracia. Ou seja, é possível divergência entre os Poderes, embora não desejável, pois cria insegurança. Considere-se, por exemplo, que nossa Constituição, no artigo 3º, determina que erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais é um princípio estruturador da República. Nestes novos tempos, esse princípio deve ganhar mais força interpretativa e relevância jurídica. Considere-se também que a pesquisa de Bolívar e Amaury é muito clara: nossos juízes estão cada vez mais conscientes de seu papel social e de seu correlato poder interpretativo. Apenas 7% de nosso Judiciário acredita que os contratos devam ser respeitados independentemente de suas repercussões sociais. Posição radicalmente oposta à dos grandes empresários e do próprio Poder Executivo. Evidentemente, não se trata de defender que Congresso e Judiciário interpretem amanhã, diferentemente do Poder Executivo, contratos ontem firmados. Nacionais ou internacionais. Trata-se de constatar apenas que essa pode vir a ser uma tendência legal e legítima. Se a divergência é salutar para o país, econômica ou politicamente, é outra questão. Constata-se também que, como parece sugerir a pesquisa, a palavra de ordem dos fundamentalistas do mercado -respeitar quaisquer contratos a qualquer preço- não representa a opinião de nossa elite considerada em suas múltiplas categorias. Diríamos até que é posição minoritária. Além de não ser juridicamente consistente com o Estado de Direito. Joaquim Falcão, 59, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é diretor da Fundação Getulio Vargas do Rio e vice-presidente do Instituto Itaú Cultural. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Hélio Bicudo: Liberdade e fidelidade Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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