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TENDÊNCIAS/DEBATES
Porcas explícitas e ornitorrincos ocultos
FÁBIO WANDERLEY REIS
A renitente desigualdade brasileira, apesar do intenso crescimento do país no século 20, mostra o erro de
pretender, como alguns dizem que seria
o caso do governo FHC, que política social seja questão de política econômica.
Mas, se queremos melhorar socialmente, não se pode escapar à necessidade de
boa política econômica, em vez da aposta no mero assistencialismo. Como obtê-la? É banal reconhecer que ela deverá
se orientar pelo diagnóstico acurado e
realista das circunstâncias em que se
executa. Mas é aí que a porca torce o rabo nas novas condições mundiais.
O ineditismo dessas condições não só
cria grandes embaraços para a avaliação
segura mesmo no plano da dinâmica
econômica como tal, dadas a fluidez e as
crises variadas. Ele torna, além disso, especialmente difícil responder com alguma segurança e clareza à indagação sobre como acoplar de maneira benigna o
econômico e o social. Afinal, se estes são
tempos de derrocada do socialismo, são
também tempos de comprometimento
até da social-democracia em que a prosperidade dos países capitalistas avançados se aliou, após a Segunda Guerra
Mundial, com bem-sucedidas políticas
de incorporação social. Assim, com toda a nova retórica "social" de instituições como o FMI e o Banco Mundial e
as incontornáveis confusões da suposta
novidade de uma "Terceira Via" à maneira de Anthony Giddens e Tony Blair,
o que temos é a perplexidade geral. E
não admira que mesmo um governo
FHC, não obstante as condições comparativamente favoráveis em que se abriu
e as qualidades intelectuais de seu chefe,
tenha soçobrado, em ampla medida
(apesar do êxito da estabilização e do
sucesso relativo, ironicamente, de certas
iniciativas na área social), em meio a
apostas otimistas e autocomplacentes
quanto às condições com que poderia
contar no plano internacional.
Que dizer do governo Lula? Certamente não há por que acreditar que Lula e o PT, forçados a revisões bastante
bruscas, estejam menos perplexos neste
mundo novo, ou que conheçam o truque ou a fórmula que falta a todos. Sua
perplexidade transparece, aliás, em avaliações honestas e torturadas que se fazem dentro do próprio partido, publicadas, por exemplo, no boletim "Periscópio". Por outro lado, no momento da
posse, como disse Lula, o navio da economia brasileira já se havia chocado
com o iceberg, e estava nitidamente à
vista a crise de proporções possivelmente catastróficas cuja ameaça havia
sido brandida pelos adversários durante a campanha eleitoral. Menos mal que
o governo tenha evitado apostas e tratado de jogar seguro. À parte as fantasias
socialistas e as tolices que pretendem
ver, nas medidas que possibilitaram os
atuais indicadores econômico-financeiros favoráveis e nas reformas agora postas em marcha, mera capitulação desnecessária a uma lógica férrea que nos reduziria as opções, é inútil querer tapar o
sol com a peneira: no mundo real que
temos diante de nós, a margem de manobra do governo (e dos agentes econômicos nacionais dos quais cabe realisticamente esperar, com todas as reservas
que se queira ter, papel crucial na eventual inflexão positiva e sustentada do
processo de desenvolvimento) é patentemente maior agora do que ao começar 2003.
Não há por que acreditar que Lula e o PT, forçados a revisões bastante bruscas, estejam menos perplexos neste mundo novo
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As tolices, de fato, têm sido muitas. É
natural que a esquerda do partido se veja frustrada diante da nova cena mundial com que depara e cujas feições adversas se intensificaram justamente
quando o acesso ao poder se tornava cada vez mais uma possibilidade real. Mas
são lamentáveis a pressa e a arrogância
(esta última mal disfarçada no desfrutável tom paternal de que se vale Fábio
Comparato ao criticar o presidente da
República em artigo recente na Folha
-pág. A3, 8/12) com que intelectuais de
quem se esperaria rigor analítico orientado pela atenção aos fatos se "mangabeirizam", reproduzindo em graus diversos o modelo em que Roberto Mangabeira Unger reúne de modo peculiar a
incontestável inteligência ao evidente
déficit de lucidez. Acrescente-se que,
sem embargo do vigor e do metaforismo ocasionalmente "brilhante" das críticas provenientes dos intelectuais de
esquerda, é inútil procurar nelas respostas claras às difíceis indagações em torno das quais se dá a perplexidade acima
mencionada. E, se há nobre reafirmação
de convicções, embora talvez ingênua,
há também volubilidades suspeitas.
Tal como se desenrola, o governo Lula
(que, aos olhos de muita gente, não devia sequer ter chegado a existir) já nos
trouxe, quando nada, a perspectiva de
efetiva consolidação institucional da democracia brasileira, com o importante
experimento que representa e a conciliação que vai aprendendo a fazer, como
na social-democracia, dos princípios
com o esforço de realismo e pragmatismo (cabe notar, a propósito, o bom sinal de que emudeceram as denúncias
da ameaça de "totalitarismo".) Há, além
disso, neste país de tradição aristocrática e elitista, o significado simbólico, potencialmente de grande importância, da
elevação da figura de um Lula à Presidência da República, cuja minimização
pode ser vista como a contrapartida, à
direita, das tolices da esquerda. Tomara
que, com os erros fatais e a eventual superação de sectarismos e inexperiências, o governo atual venha também a
ter a chance de avançar rumo à social-democracia efetiva e ao menos a deflagrar o processo de longo prazo que será
necessário para talvez chegarmos a um
Brasil que supere o peso da herança social negativa e seja realmente igualitário
e justo. O qual, cumpre reconhecer, não
se pode enxergar no futuro que a vista
alcança, por melhores que as políticas
econômico-sociais venham a ser.
Fábio Wanderley Reis, 66, cientista político,
doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da Universidade Federal de Minas
Gerais.
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