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LÍNGUA E PODER
"A terapia teve um efeito
idiossincrático com prognóstico favorável em caso de pronta
supressão". Essa frase, enigmática
para os não-iniciados nas sendas
médicas, não significa muito mais
do que "o remédio teve efeito contrário, mas não causará problemas se
for suspenso logo".
Esse é um dos exemplos de jargão
que consta da reportagem sobre linguagens técnicas publicada na semana passada no caderno Sinapse. O
jargão é de fato inevitável, mas isso
não significa que ele deva ser empregado em todas as ocasiões. Com
efeito, toda profissão, do telemarketing à física de partículas, acaba por
desenvolver um vocabulário específico, muitas vezes impenetrável para o
leigo. Não apenas neologismos são
criados como palavras comuns podem ter sua significação alterada.
Em alguns casos, trata-se de uma
necessidade. O jargão, no mínimo,
economiza palavras, concentrando
carga informativa em termos específicos. Quando um médico fala em
"miocardiopatia idiopática", ele está
na verdade dizendo um pouco mais
do que apenas "problemas cardíacos
de causa ignorada". No subtexto, um
outro médico compreenderá que o
paciente sofre de moléstia cardíaca
de origem desconhecida e para a
qual já foram descartadas as causas
que mais comumente provocam
doenças do coração.
Em determinadas áreas científicas,
os próprios objetos de estudo não
passam de jargão. É o caso, por
exemplo, da linguística, com seus
morfemas, sintagmas e lexemas, e
da física de partículas, com seus
quarks, glúons e léptons. No limite,
sem o jargão, os fenômenos estudados não podem nem ser enunciados.
Reconhecer a importância e a necessidade do jargão em certas situações não significa chancelar seu uso
indiscriminado. Um médico ou um
advogado que se dirijam a seus clientes em linguagem técnica incompreensível estão, na verdade, atendendo muito mal ao consumidor,
que deve ter, em todas as ocasiões,
acesso a uma explicação completa de
sua situação em linguagem acessível.
Infelizmente, as coisas nem sempre se passam assim. Desde que o
mundo é mundo, profissionais de
uma determinada área tendem a
unir-se para manter sua arte impenetrável para o público em geral e, assim, aumentar seu poder. Não foi
por outra razão que os escribas do
antigo Egito complicaram desnecessariamente a escrita hieroglífica: era
uma forma de conservarem e até de
ampliarem sua posição hierárquica.
Os tempos e as ciências mudaram,
mas o princípio de complicar para
valorizar-se permanece em vigor.
Não devemos, é claro, ser ingênuos
e acreditar que poderemos promover
a plena igualdade através da língua.
Democracia é, antes de mais nada, a
arte de negociar, de aplicar o bom
senso na solução de problemas. Nesse sentido, o bom profissional é
aquele capaz de comunicar-se no
melhor jargão com seus colegas,
mas que consegue, sem grandes perdas, fazer-se entender pelo leigo. Os
que ostensivamente abusam da linguagem técnica tendem a ser os menos capazes, os que mais precisam
afirmar-se para não perder poder.
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