São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A democracia sobreviveu

MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA

Não poderia ter sido pior. As primeiras eleições presidenciais democráticas em 29 anos deram a vitória a um aventureiro. Sem partido, com um discurso populista de direita e decisiva ajuda de setores da mídia, Collor abatera agremiações e lideranças que haviam conduzido a transição do autoritarismo à democracia. Passados menos de dois anos, escolheu a renúncia antes que o Congresso o removesse do poder. Deixava um travo amargo na boca da esmagadora maioria dos 35 milhões de brasileiros que lhe deram o voto no segundo turno, inflação em disparada, máquina administrativa federal desarranjada, Congresso dividido entre legendas que não conseguiam formar maioria e um vice-presidente com atributos de liderança muito aquém das necessidades da hora. Em suma, a receita completa de uma crise de governabilidade.
Àquela altura, nove em cada dez analistas políticos acreditavam que a ordem democrática iria à deriva se não fossem introduzidas reformas políticas, especialmente no sistema eleitoral e na lei de partidos. A redemocratização parecia posta em xeque.
Os prognósticos sombrios não se cumpriram. A crise da Presidência Collor foi um teste duro para as instituições. Mas foi também a primeira demonstração de que eram capazes de reagir a um desafio que se temia ter vindo cedo demais e de funcionar adequadamente. A saída de Collor resultou da operação simultânea de instrumentos de controle da sociedade, especialmente da imprensa, de parcela da opinião pública, como os milhares de jovens que saíram às ruas de cara pintada, e da instituição parlamentar.
De 1992 para cá, há robustos indicadores de que as instituições políticas nacionais têm funcionado razoavelmente bem ou, pelo menos, melhor do que supõem as críticas superficiais -em três planos igualmente importantes para o desempenho da democracia.
Primeiro, a competição eleitoral é livre e organizada em torno de partidos ou coligações de partidos que, bem ou mal, expressam divergências de opiniões, de valores e de interesses efetivamente existentes na sociedade. Embora o espaço para as oligarquias e o aventureirismo populista não tenha desaparecido, a sua influência em âmbito nacional vem diminuindo de eleição para eleição.
Segundo, o número elevado de partidos e o seu corolário, a dificuldade de construir maiorias sustentáveis no Congresso, não tiveram como consequência a paralisia dos governos ou um déficit de governança. Ao contrário, houve governo; na maioria das vezes, não lhe faltou maioria no Congresso; muita mudança aconteceu. Não só se chegou à estabilidade da moeda como foi levada adiante uma extensa agenda de reformas econômicas e sociais. Elas demandaram farta produção legislativa, incluindo numerosas emendas constitucionais. (A Carta de 1988 foi modificada 37 vezes, 27 das quais durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique.) A tarefa de formar maioria no Congresso, que sustentasse as iniciativas do Executivo, não foi trivial. Requereu costura fina e uma liderança política familiarizada com os interesses e as idiossincrasias dos congressistas, capaz, além disso, de transigir e de negociar.


Contrariando os prognósticos sombrios, a democracia, depois de Collor, saiu-se melhor que as expectativas


Terceiro, aprimoraram-se sensivelmente os instrumentos públicos e sociais de supervisão da ação governamental. Uma imprensa livre, plural e em acendrada competição por leitores tem exercido marcação cerrada sobre os atos de autoridades, políticos e figuras públicas. O chamado "jornalismo investigativo" ou "denuncismo", segundo os críticos, fez vítimas inocentes, mas ajudou a reduzir o espaço da prevaricação e da corrupção impunes. O mesmo vale para o Ministério Público e para as organizações da sociedade dedicadas a ativar o alarme de incêndio quando aparece alguma fumaça suspeita no governo ou na oposição. Finalmente, o Congresso cortou na própria carne diante de evidências de má conduta parlamentar. Estão aí os episódios envolvendo os "anões" da comissão de Orçamento, Ibsen Pinheiro, Hildebrando Paschoal, Antonio Carlos Magalhães, José Roberto Arruda e Jader Barbalho.
Contrariando os prognósticos sombrios e a sabedoria convencional, portanto, a democracia brasileira, depois de Collor, saiu-se melhor que as expectativas, enquanto o país se confronta com seus muitos e intrincados problemas. As instituições democráticas, apesar de todas as suas limitações e deficiências, foram capazes de permitir a controvérsia, de processar as disputas, de produzir decisões.


Maria Hermínia Tavares de Almeida, é professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.



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