São Paulo, terça-feira, 30 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Trauma: devastadora doença do séc. 21

JORGE CARLOS MACHADO CURI e MILTON STEINMAN

DESASTRES automobilísticos, quedas, queimaduras, violência. Essas e outras causas externas são responsáveis, neste início de século 21, por uma epidemia de trauma no Brasil. A cada hora, contabilizamos 17 vítimas fatais e 50 seqüelados definitivos. Num ano, são 150 mil óbitos e 450 mil pessoas comprometidas de forma irreversível. Se considerarmos o trauma uma doença, e assim ele deve ser encarado, é recordista em mortes. Só fica atrás das patologias do aparelho circulatório e do câncer. A maior parte de suas vítimas (40%) tem até 30 anos, ou seja, está no ápice da vida e da atividade produtiva.


Não bastam ambulâncias para as emergências, pois, na atual conjuntura, elas só transportam a morte para outro endereço


O sistema público de saúde gasta atualmente cerca de R$ 9 bilhões no atendimento ao trauma, quase um quarto da destinação orçamentária da União à saúde em 2006. O tratamento de um paciente grave de trânsito beira R$ 250 mil -a média é R$ 150 mil para vítimas de trânsito. Trata-se de investimento alto, sobretudo considerando que os recursos per capita em saúde giram em torno de R$ 300 no Brasil. Trauma não é fatalidade. Tem causas claras, de conhecimento público: recursos insuficientes em saúde e educação, altos índices de pobreza e de violência, urbanização desordenada e outras, além da omissão das autoridades em diversos níveis. Inexiste no país uma política pública de combate e prevenção, não há campanhas de conscientização e orientação. Governos e Parlamentos convivem inertes com a perda de vidas humanas, com o desperdício de recursos médico-hospitalares e com a banalização da violência. Em que pese a complexidade do problema, não adotam medidas simples que permitiriam reverter o quadro, já que a maioria dos traumas pode ser prevenida. Especificamente na assistência de saúde ao traumatizado, temos muitíssimo a evoluir. A começar pelo atendimento pré-hospitalar, que é embrionário. É verdade que o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) vem se desenvolvendo, mas não está devidamente conectado com o atendimento hospitalar, que é insuficiente na maior parte do Brasil. Os hospitais de alta complexidade encontram-se num dilema: ou atendem ao trauma ou a outras doenças graves. Por fim, a reabilitação é insipiente. Os recursos humanos também não têm formação adequada. Das 156 escolas médicas do país, menos de 5% têm disciplinas voltadas ao trauma. Aliás, a abertura indiscriminada de faculdades de medicina contribui para o caos. É a opção pela quantidade, e não pela qualidade. O resultado é que as vítimas não raramente chegam às mãos de profissionais recém-formados, mal valorizados, em prontos-socorros mal equipados, quando precisariam, para ampliar as chances de sobreviver e de reduzir seqüelas, de uma equipe experiente, com recursos necessários. Enfrentamos uma doença grave, com epidemiologia, fisiopatologia, morbidade e mortalidade conhecidas. Não basta, portanto, colocar algumas ambulâncias para atender a emergências, pois, na atual conjuntura, elas só transportam a morte para outro endereço. Em vez de óbitos nas ruas, eles ocorrem nos hospitais e prontos-socorros. Para combater essa doença, precisamos criar um sistema nacional de trauma integrado com as redes de saúde locais. A eficiência do atendimento depende da transição entre as diversas fases de assistência, integrando recursos para atingir o melhor resultado. Esses sistemas regionalizados devem oferecer os cuidados de acordo com as especificidades da população, seja ela rural, seja urbana. Têm de identificar e enfatizar a prevenção dos traumatismos. Devem permitir que todos os cidadãos tenham acesso a um tratamento adequado, rápido e coordenado. Esse conceito vai ao encontro do princípio do SUS, a universalidade e a eqüidade de acesso. A experiência de outras nações nos permite almejar, com a construção e consolidação desse sistema de trauma, a redução das mortes e do número e da gravidade dos inválidos, o aumento dos anos de vida produtiva, a diminuição dos custos do atendimento inicial e da reabilitação e mais eficácia da rede de saúde. Só assim demonstraremos que somos um país que leva a sério a saúde dos cidadãos. Com obstinação, de três a cinco anos, podemos reduzir os óbitos por trauma em 15%, os desastres automobilísticos em 10%, as mortes evitáveis em 25% e os custos hospitalares em 15%.
JORGE CARLOS MACHADO CURI , 52, cirurgião geral e intensivista, é presidente da Associação Paulista de Medicina e médico-assistente da disciplina de cirurgia do trauma, na Unicamp. MILTON STEINMAN , 42, cirurgião geral e do trauma, doutor em cirurgia pela USP, é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado.


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