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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mentindo ou escondendo a verdade

ISAIAS RAW

Eu pertenço a uma comunidade universal, aberta e democrática, com códigos de ética e autofiscalização. É a comunidade científica, que obtém da sociedade recursos para investigar e descobrir. A fim obter esses recursos, temos que apresentar nosso projeto de investigação às agências de financiamento, onde são submetidas a um grupo de especialistas, mantidos anônimos, que dá um parecer sobre a viabilidade da proposta.
Os resultados são publicados em revistas internacionais, onde o artigo submetido é revisto novamente por um grupo de especialistas, mantidos anônimos, que, convencido dos dados e conclusões, recomenda sua publicação, que fica à disposição de todos. Começa então um novo ciclo: baseado na publicação, qualquer pesquisador pode usar as informações para realizar novas pesquisas, que estendem os resultados. Os resultados já publicados dão origem a novos experimentos, totalmente diferentes, que confirmam, ou não, as observações e, particularmente, a interpretação da publicação anterior.
Esse é um processo contínuo, universal, que permite adquirir e comprovar novos conhecimentos. Essa é a essência de como funciona a ciência, que deveria ser aprendida na escola média, preparando a sociedade para compreender, apoiar, usar e até impor limites à pesquisa científica.
O grande paradoxo de hoje é que o aumento de educação formal não logra transmitir como funciona a ciência. Observa-se uma falta de sintonia, mesmo nas camadas mais educadas, entre ciência e sociedade. Às vezes não se trata da dificuldade de entender conceitos complexos. Idéias simples são rejeitadas pela simples ignorância, como ocorre com muitas pessoas que ainda imaginam que o homem jamais pisou na lua e que os filmes mostrados foram "fabricados" em Hollywood. Outros, por simples teimosia, querem impor opiniões sem base. Um exemplo simples é, ano após ano, uma das mais sérias personalidades da televisão repetir que o horário de verão não traz economia de energia, apesar dos dados das empresas de eletricidade no Brasil e em todos os países do hemisfério Norte que o adotam.
Não diferente é a posição de leigos, ainda que com mandato político, que teimam em exigir uma demonstração de que a soja transgênica não afeta a saúde do brasileiro, como se fôssemos uma espécie diferente da do norte-americano, canadense ou argentino, que há anos se alimentam de óleo, farinha ou tofu produzidos com a soja transgênica.


O grande paradoxo de hoje é que o aumento de educação formal não logra transmitir como funciona a ciência
Uns mentem a soldo de interesses para que o Brasil não logre produzir mais soja, mais barata, outros para ganhar espaço na mídia; ou mentem a si mesmos por simples teimosia irracional.
As pesquisas com transgênicos, alimentos, vacinas e medicamentos são cuidadosamente testadas por instituições rigorosas e acima de influências, como o norte-americano FDA. Exigir novos ensaios no Brasil constitui um atraso enorme para poder utilizar esses avanços da tecnologia moderna, com prejuízos econômicos ou sociais. Imagine questionar a insulina e o fator anti-hemofílico, hoje quase totalmente produzidos por bactérias transgênicas -cerca de 6% da população e milhares de hemofílicos estariam condenados à morte.
Quando um poder civil ou religioso confronta as evidências científicas, atrasa o processo, mas acaba tendo que aceitar a evidência. Foi assim com Galileu e a Igreja Católica e assim será com a afirmação falsa de que camisinhas permitem a passagem dos vírus da Aids (e da hepatite B).
O reverso aconteceu quando um juiz tomou uma decisão obrigando o governo a fornecer um produto transgênico para tratar uma centena de pacientes com uma doença hereditária, sem levar em conta que cada paciente custa ao Estado US$ 100 mil por ano, recurso que poderia evitar a morte de centenas de prematuros que não logram receber o surfantante, que custa R$ 200 (e que o Butantan deve brevemente fornecer a preços menores) ou diabéticos juvenis que necessitam de insulina. A decisão judicial não contempla a responsabilidade fiscal ou social -cumpra-se!
No outro pólo, qualquer pessoa que ligar a televisão assiste arrepiado a um amontoado de mentiras, vendidas (por dinheiro) conscientemente, a uma população incapaz de analisar criticamente o que se lhe empurra.
Na complexa estrutura judiciária, não se obriga um concessionário de rádio ou televisão a ser responsável, evitando que seu espaço seja usado por verdadeiros vigaristas que vendem águas milagrosas, que se locupletam à custa da ignorância da população. É raro contar com o poder público para proteger a população ingênua ou induzida pela propaganda antiética.
Um exemplo raro foi a proibição, pela Anvisa, de anunciar que a vitamina C evita ou cura a gripe -mas ela continua a ser vendida pela propaganda anterior e pelo balconista da farmácia. Quando vamos retirar das farmácia montanhas de outros produtos que, se não fazem mal diretamente, fazem-no enganando a população que pensa estar sendo medicada e que, portanto, tem sua saúde prejudicada?
Com 77 anos, 50 dedicados à pesquisa científica e ao ensino das ciências de todos os níveis, começo a pensar: que a Terra pare de girar, para eu descer!


Isaias Raw, 77, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Butantan. Foi professor da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, da City University de Nova York e do MIT (todos nos EUA).


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