São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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Atores que fazem sucesso na nova safra de filmes nacionais não encontram bons papéis na televisão, onde a preferência é por sulistas falando "nordestinês"

Nordestinos brilham no cinema e somem da TV

Divulgação
Daniela Mercury e Alceu Valença (Maria Bonita e Lampião), nordestinos de verdade na novela "Mandacaru" (97/98)


FERNANDA DANNEMANN
FREE LANCE PARA A FOLHA

ELES BRILHAM no cinema, mas não estão na TV. Têm anos de experiência teatral, prêmios, reconhecimento. Ainda assim, enfrentam dificuldades comparáveis às de atores em início de carreira e, muitas vezes, é para esses que perdem o papel numa novela. "Godard já dizia que a televisão fabrica o esquecimento", lembra o cineasta Walter Salles, diretor de "Abril Despedaçado", no qual a interpretação do paraibano José Dumont, 51, não nos deixa crer que estamos diante de um ator sem trabalho nas emissoras. "Muitas vezes, a TV opta pelo mais fácil ou superficial, e daí a invasão de atores-manequins. Dumont e Marcelia Cartaxo são o inverso desse estado de coisas, dão alma e sangue aos seus personagens", diz Salles. Assim como Dumont, a cearense Marcelia, 39, premiada no Brasil e no exterior por sua inesquecível Macabéa, de "A Hora da Estrela" (Suzana Amaral), não se dá ao luxo de escolher papéis. "Fico ressentida na hora do convite, mas, depois, a poeira assenta. Tenho o aluguel pra pagar e não posso ter preconceitos, senão minha auto-estima vai lá embaixo", diz ela, que sente saudades da extinta TV Manchete, onde diz ter pego "papéis legais" em novelas como "Mandacaru" e "Ana Raio". "Na Globo, fiz participações como mulheres de serviço social [refere-se a empregadas domésticas". O Brasil é preconceituoso, e eu não tenho peitão nem bundão... Aí faço a empregada como se fosse a melhor coisa do mundo." Ilva Niño, 67, nascida em Pernambuco, talvez por também não escolher papéis, já passou por mais de 20 novelas. Premiada no teatro, diz que ficou marcada como empregada pelo sucesso em "Sem Lenço, Sem Documento" e "Roque Santeiro", mas também por ser nordestina. "Os diretores acham que nós aprofundamos mais este tipo de personagem. Mas gaúcho não interpreta só gaúcho. Por que será?" questiona.

"Fica falso" O autor Benedito Ruy Barbosa, que em "Renascer" contou com o paulista Antônio Fagundes no papel de coronel baiano e o carioca Marcos Palmeira como herdeiro criado na fazenda de cacau, diz que "nordestinos devem interpretar nordestinos por uma questão de escalação correta, senão fica falso". Já o colega Ricardo Linhares, co-autor de "Tieta", "Pedra Sobre Pedra", "A Indomada" e "Porto dos Milagres", todas exibidas pela Globo e ambientadas no Nordeste, defende a universalidade do ator, mas com limites. "Não dá pra um nordestino fazer um sulista porque vai ter briga de sotaque. Mas, embora o tipo físico facilite o estereótipo, o ator não pode ficar aprisionado. É um absurdo o José Dumont só fazer porteiros. Mas é uma característica da indústria de entretenimento. Nunca vi o Richard Gere como porteiro." Para a cineasta Suzana Amaral, "a televisão quer o nordestino de cara bonita. Mostra o Nordeste pasteurizado e um Brasil com glamour". Quanto a isso, Benedito Ruy Barbosa é taxativo: "Realmente, alguns autores preferem a beleza, mas, muitas vezes, os atores bonitos deixam a desejar na hora de interpretar". Bonito, o paraibano Luiz Carlos Vasconcelos, galã de "Eu, Tu, Eles", de Andrucha Waddington, e presente em mais quatro longas, entre eles "Abril..." e o inédito "Estação Carandiru", de Hector Babenco, está no Rio de Janeiro há 18 anos. "A pior discriminação que sofri veio de mim mesmo quando, na hora dos testes, eu tremia para não revelar meu sotaque e minha origem." Respeitado por seu trabalho no cinema e no teatro, ele só fez pontas na TV e recebeu convites pouco animadores. "Quando vi os papéis que recusei feitos por outros atores, caí de joelhos e agradeci a Deus por não ter aceito", diz. Assim como Vasconcelos, os novatos lutam para fugir do estereótipo. Os baianos Wagner Moura, 25, e Lázaro Ramos, 23, atores de vários longas, como o inédito "O Homem do Ano", de José Henrique Fonseca, recusaram papéis pequenos oferecidos pela Globo. Lázaro, que também protagoniza "Madame Satã", de Karïm Ainouz, lamenta que "a diversidade brasileira não esteja na TV". Numa coisa Lázaro tem razão: o sotaque oficial da televisão é mesmo o do Sudeste, mais precisamente o carioca -"sem o "s" chiado e o "r" escarrado", como diz a fonoaudióloga Glorinha Beuttemuller, especializada em aperfeiçoamento vocal de atores. Ela considera "uma imitação horrenda" o "nordestinês" tão propagado nas novelas rurais.

Sotaque
"Quando comecei foi complicado porque o sotaque limita mesmo o ator", relembra a cearense Luíza Tomé, que pediu ajuda a Glorinha e conquistou seu lugar ao sol. Assim como ela, Arlete Sales, pernambucana, conta que muitas vezes não pegou um papel mais sofisticado. "Tinham medo que eu dissesse "oxente". Me libertei do sotaque e escapei de ter que me sujeitar sempre aos mesmos papéis."
Gero Camilo, 31, cearense que roubou a cena em "Bicho de Sete Cabeças", diz que não se acua ante o preconceito. "Não fico em casa preocupado se vão me aceitar ou não. A ditadura estética não está só na TV, mas na sociedade."
Diretora de "Narradores de Javé", em fase de finalização, no qual Gero Camilo atua ao lado de José Dumont, Eliane Caffé diz que há dois "Brasis". "Um é voltado para a ideologia globalizante, e o outro, mais rico, autêntico e marginalizado. Assim, o nordestino pode ser representado desde que seja "apropriado" e "domesticado" segundo os valores "aceitáveis" da estética esterilizada da TV."



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