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Opinião
ABRIDEIRA
Chef propõe viagem etílico-cultural pelas glórias 'daquela-que-matou-o-guarda'
"Aí, sim! Agora vem a pontinha da pirâmide social tupiniquim tomar cachaça. Acham exótico! E dizem que é boa 'quiném' uísque"
RODRIGO OLIVEIRA*
ESPECIAL PARA A FOLHA
Famosa e influente desde os
primeiros séculos da colonização, a cachaça, hoje, tem seu
lugar ao sol. Mas não desfruta
do mesmo status de seus pares
estrangeiros. Vodca na Rússia
é assunto sério; uísque, na Escócia, orgulho nacional, e os
"brandies" da França são, para
eles, os melhores destilados do
mundo. É assim que tem que
ser. São o fruto da sua terra, são
as bebidas que seus heróis tomaram.
Aqui na terrinha, quando a
tal Independência chegou e a
burguesia emergente foi buscar referências na Europa, a
caninha, que era o espírito da
brasilidade, tornou-se bebida
de segunda, coisa de escravos.
Mas, sem guardar ressentimentos, a água-que-passarinho-não-bebe voltou à mesa
da elite. No primeiro momento, à da elite intelectual. Artistas iniciaram, com a Semana
de Arte Moderna, em 1922, um
movimento pelo resgate da
cultura brasileira em todos os
seus aspectos. O samba desceu
o morro e a caiana saiu do armário. Nossa tão querida engasga-gato, com sua embaixadora, a caipirinha, foi devagarzinho ganhando o mundo, junto da feijoada e do Carnaval.
Aí, sim! Agora vem a pontinha mais alta da pirâmide social tupiniquim tomar cachaça.
Acham exótico! E dizem que é
boa "quiném" uísque! Ouvir isso de um irlandês, vá lá.
Nenhuma outra bebida no
mundo desfruta dessa diversidade de madeiras para envelhecimento. Se eles têm barris
de carvalho, temos de bálsamo,
umburana, jequitibá, garapeira, sassafrás, ipê... Nenhum outro lugar do mundo tem sua
aguardente sendo produzida
em regiões e condições tão diversas quanto a do Brasil.
Quer visitar o Piemonte,
passear por Bourdeaux, legal.
Se puder, no caminho, passe
em Parati (RJ), berço da cachaça de qualidade. Dê um pulinho até Januária (MG), pra ver
como se faz a "marvada" às
margens do rio São Francisco.
Já que está ali, suba um pouquinho mais e veja pinga orgânica sendo feita em Rio de
Contas (BA), na Chapada Diamantina. Aproveite também e
veja a maior coleção de cachaça em Lagoa do Carro (PE).
Chegue na sertaneja Guarabira (PB), e prove água-benta
pra cabra-macho. Mais adiante, em Maranguape (CE), está
o maior tonel do mundo: 374
mil litros da purinha!
No Sul, tome "uma" em
Morretes (PR), comendo barreado. Seguindo viagem, passe
em Luís Alves (SC). A pinga lá
tem nomes difíceis, de famílias
que vieram de longe e fazem
cachaça há três gerações.
Quando o chão for se acabando, pare em Osório (RS) e
veja que não são só os vinhos
que fazem esse povo ficar com
as bochechas rosadas.
Mais um convite: percorra
páginas da história etílica. Visite Câmara Cascudo em "Prelúdio da Cachaça". Dê uma
chegadinha em "Os Eufemismos da Cachaça", de Mário de
Andrade, troque idéia com Gilberto Freyre sobre as influências da cultura da cana. Na volta, ouça Marcelo Câmara falar
de sua paixão, ou de sua cachaça, como diria Drummond.
Tem mais gente falando disso. Falando bem, claro. Nos últimos anos, mais de uma dezena de bons títulos se propõem
a ensinar o bê-a-bá daquela-que-matou-o-guarda.
Só não diga que tomou cachaça de banana ou cachaça da
Noruega. Cachaça, só de cana-de-açúcar, e feita no Brasil.
Nem que pinga boa é a de "cabeça": pinga boa vem do "coração" da destilação. Jamais diga
que a nossa aguardente é conhecida por pinga porque pingava nas costas açoitadas dos
pobres escravos. É pinga porque pinga mansinho na ponta
do alambique. É aguardente,
"acqua ardens", desde que Plínio, o Velho destilou resina de
cedro numa chaleira há mais
de dois mil anos, e não porque
fazia arder as marcas da chibata. E em hipótese alguma diga
de uma cachaça superior que
"é boa "quiném" uísque!".
E como diz o verso popular:
"A cachaça geribita/ A neta de
cepa torta/Faz uns perder o tino/E outros errar a porta".
Beba com moderação. Mas
se não tiver, beba com limão e
mel, que cura a gripe.
RODRIGO OLIVEIRA, 28, é chef do restaurante
e cachaçaria Mocotó
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