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NO PLANALTO
O Lula que roça a Presidência flerta
com o conservadorismo
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Candidato ao Planalto pelo
PMDB, Ulysses Guimarães
acabara de tropeçar nas urnas de
1989. Ainda sob os efeitos do tombo, mandou um recado a Lula:
bastaria um telefonema para que
subisse no palanque do PT.
Lula passara raspando para o
segundo turno. Batera Brizola por
um triz. Contra Collor, precisaria
de todos os aliados que fosse capaz
de reunir. A estampa moderada
de Ulysses suavizaria a pecha de
radical que Lula trazia na testa.
Mas Ulysses afundou no mar gelado de Angra com a mágoa do
desprezo a pesar-lhe na alma. Lula não telefonou. Alegou, Ulysses
saberia depois, que a imagem da
raposa do PMDB estava associada
à Nova República de José Sarney.
O PT tinha uma reputação a zelar.
Decorridos 13 anos, Lula se arrepende do telefonema que não deu.
E chega às urnas de 2002 abraçado ao pretexto que o impediu de
responder ao aceno de Ulysses em
1989: Sarney.
Lula acorda hoje muito próximo
da Presidência. Uma proeza. Deve-a ao esforço que empreendeu
para livrar-se da auréola de pureza que o tornava diferente de outros políticos. Sucumbiu ao pragmatismo. Sem ressalvas.
Lula se deu conta de que a política não é uma virgenzinha imaculada disposta a pegar em armas
para defender a própria virtude. É
uma meretriz gorda, velha e inconfiável, que vive de paparicos
com a plutocracia.
Lula descobriu que o sucesso político não convive bem com a ideologia. Percebeu que quem ele era
antes não estava preparado para
o êxito eleitoral. Decidiu ir à vida.
Trocou a condição de santo pela
de político convencional, de carne
e osso.
O Lula inocente, retirante nordestino, tinha a cara da maioria
do eleitorado, uma bugrada esquecida. Mas a miséria refugou as
três oportunidades que teve de votar em si mesma.
Foi preciso que Lula aparasse a
barba, vestisse Armani e percorresse a avenida Paulista para que
o seu cesto de votos transbordasse
do terço de praxe. O Lula que roça
a Presidência concluiu que o povo
não quer revolução.
O povo só quer trocar de joelho.
Quer ficar sentado nas coxas
quentinhas da Fiesp, para pensar
que melhorou de vida depois de
ter passado oito anos no colinho
macio da Febraban.
À sua maneira, Lula envereda
pela trilha aberta por FHC. Eleito,
tende a alterar os rumos da economia apenas o suficiente para que
a minoria privilegiada não imagine que pode perder o controle da
situação. Tende a mudar os costumes de Brasília só o bastante para
que o "centrão" não pense que vai
ficar sem os cargos e as verbas a
que se habituou.
A convivência com o vício tem
um lado prático. Eleito, Lula não
terá de organizar assembléias para sondar o apetite dos aliados.
Basta abrir as gavetas dos ministérios. No da Fazenda, descobrirá,
por exemplo, que o neolulista Valdemar Costa Neto tem predileção
pela Receita Federal. Valdemar
preside o PL de José Alencar, o vice
de Lula. Sob Itamar Franco, ganhou um mimo: a inspetoria da
alfândega do Aeroporto de Cumbica.
Ali, mandava mais que FHC e
Rubens Ricupero, os ministros de
então. Em declaração de 1995, dada à Folha, explicou o porquê do
apreço pelo fisco: "Você imagina
se tem um cara de poder com problemas na Receita. Você chega e
pergunta se o cara pode te arrumar uns 3.000 votos. Você livra o
cara e está eleito". Sobre a alfândega: "O pessoal chega do exterior
e pede para liberar a bagagem (...).
Às vezes eu mandava um fax pedindo a liberação".
Meses antes, Brasília fora tomada por um zunzum vindo justamente da alfândega de Cumbica.
Valdemar, obviamente, nada tinha a ver com o mau cheiro do
peixe. Conforme deixou claro em
carta a Ricupero (veja documento
acima). Era vítima de "insinuações maldosas".
A sopa dos políticos na Receita
acabou com a chegada do técnico
Everardo Maciel. Mas Valdemar
era, então, mero líder de um periférico PL. Hoje, fiador de Lula, há
de sonhar não mais com alfândegas, mas com o posto do próprio
Maciel.
Sentado nas nuvens, Ulysses
Guimarães dá boas gargalhadas.
Torce por um segundo turno que
exponha Lula a novos e didáticos
relacionamentos. Alfaiate do terno que o destino não deixou Tancredo Neves vestir, Ulysses sabe
que, em política, aliança esdrúxula é um mal necessário.
Sabe também que a transformação de um mal necessário em um
bem é milagre que nem o PT é capaz de operar. Lamenta a ausência de linha telefônica no céu.
Adoraria receber uma ligação do
Lula pós-moderno. Mandaria dizer que não fala com aliados de
Sarney. Tem uma biografia a preservar.
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