São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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NO PLANALTO

O Lula que roça a Presidência flerta com o conservadorismo

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Candidato ao Planalto pelo PMDB, Ulysses Guimarães acabara de tropeçar nas urnas de 1989. Ainda sob os efeitos do tombo, mandou um recado a Lula: bastaria um telefonema para que subisse no palanque do PT.
Lula passara raspando para o segundo turno. Batera Brizola por um triz. Contra Collor, precisaria de todos os aliados que fosse capaz de reunir. A estampa moderada de Ulysses suavizaria a pecha de radical que Lula trazia na testa.
Mas Ulysses afundou no mar gelado de Angra com a mágoa do desprezo a pesar-lhe na alma. Lula não telefonou. Alegou, Ulysses saberia depois, que a imagem da raposa do PMDB estava associada à Nova República de José Sarney. O PT tinha uma reputação a zelar.
Decorridos 13 anos, Lula se arrepende do telefonema que não deu. E chega às urnas de 2002 abraçado ao pretexto que o impediu de responder ao aceno de Ulysses em 1989: Sarney.
Lula acorda hoje muito próximo da Presidência. Uma proeza. Deve-a ao esforço que empreendeu para livrar-se da auréola de pureza que o tornava diferente de outros políticos. Sucumbiu ao pragmatismo. Sem ressalvas.
Lula se deu conta de que a política não é uma virgenzinha imaculada disposta a pegar em armas para defender a própria virtude. É uma meretriz gorda, velha e inconfiável, que vive de paparicos com a plutocracia.
Lula descobriu que o sucesso político não convive bem com a ideologia. Percebeu que quem ele era antes não estava preparado para o êxito eleitoral. Decidiu ir à vida. Trocou a condição de santo pela de político convencional, de carne e osso.
O Lula inocente, retirante nordestino, tinha a cara da maioria do eleitorado, uma bugrada esquecida. Mas a miséria refugou as três oportunidades que teve de votar em si mesma.
Foi preciso que Lula aparasse a barba, vestisse Armani e percorresse a avenida Paulista para que o seu cesto de votos transbordasse do terço de praxe. O Lula que roça a Presidência concluiu que o povo não quer revolução.
O povo só quer trocar de joelho. Quer ficar sentado nas coxas quentinhas da Fiesp, para pensar que melhorou de vida depois de ter passado oito anos no colinho macio da Febraban.
À sua maneira, Lula envereda pela trilha aberta por FHC. Eleito, tende a alterar os rumos da economia apenas o suficiente para que a minoria privilegiada não imagine que pode perder o controle da situação. Tende a mudar os costumes de Brasília só o bastante para que o "centrão" não pense que vai ficar sem os cargos e as verbas a que se habituou.
A convivência com o vício tem um lado prático. Eleito, Lula não terá de organizar assembléias para sondar o apetite dos aliados. Basta abrir as gavetas dos ministérios. No da Fazenda, descobrirá, por exemplo, que o neolulista Valdemar Costa Neto tem predileção pela Receita Federal. Valdemar preside o PL de José Alencar, o vice de Lula. Sob Itamar Franco, ganhou um mimo: a inspetoria da alfândega do Aeroporto de Cumbica.
Ali, mandava mais que FHC e Rubens Ricupero, os ministros de então. Em declaração de 1995, dada à Folha, explicou o porquê do apreço pelo fisco: "Você imagina se tem um cara de poder com problemas na Receita. Você chega e pergunta se o cara pode te arrumar uns 3.000 votos. Você livra o cara e está eleito". Sobre a alfândega: "O pessoal chega do exterior e pede para liberar a bagagem (...). Às vezes eu mandava um fax pedindo a liberação".
Meses antes, Brasília fora tomada por um zunzum vindo justamente da alfândega de Cumbica. Valdemar, obviamente, nada tinha a ver com o mau cheiro do peixe. Conforme deixou claro em carta a Ricupero (veja documento acima). Era vítima de "insinuações maldosas".
A sopa dos políticos na Receita acabou com a chegada do técnico Everardo Maciel. Mas Valdemar era, então, mero líder de um periférico PL. Hoje, fiador de Lula, há de sonhar não mais com alfândegas, mas com o posto do próprio Maciel.
Sentado nas nuvens, Ulysses Guimarães dá boas gargalhadas. Torce por um segundo turno que exponha Lula a novos e didáticos relacionamentos. Alfaiate do terno que o destino não deixou Tancredo Neves vestir, Ulysses sabe que, em política, aliança esdrúxula é um mal necessário.
Sabe também que a transformação de um mal necessário em um bem é milagre que nem o PT é capaz de operar. Lamenta a ausência de linha telefônica no céu. Adoraria receber uma ligação do Lula pós-moderno. Mandaria dizer que não fala com aliados de Sarney. Tem uma biografia a preservar.



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