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OPINIÃO ECONÔMICA
Chutando a escada
RUBENS RICUPERO
O forte, o original, o importante no discurso da posse é
a defesa do direito de buscar um
modelo próprio de desenvolvimento. É verdade que o discurso
não se aventura muito em definir
qual seria precisamente esse modelo. Alguns começam mesmo a
desconfiar de que o continuísmo
em economia é mais que mera tática inicial. Veríssimo chega a advertir, em sua coluna de quinta-feira: "Por enquanto, na área econômica, só o que se ouviu até agora é que o tal pensamento único
não era único porque suas alternativas eram desconsideradas,
era único porque não tinha alternativa mesmo".
Pode ser, mas acho difícil conservar a política econômica por
muito tempo. Como, de fato, conciliá-la com a inapelável condenação que abre o discurso: "Diante do esgotamento de um modelo
que, em vez de gerar crescimento,
produziu estagnação, desemprego e fome (...) diante do impasse
econômico, social e moral do país,
a sociedade brasileira escolheu
mudar(...)"? Ora, o modelo e essa
política que se pretende continuar
são inseparáveis porque um é a
causa do outro. Como não se pode, ao mesmo tempo, afirmar
uma coisa e seu contrário, de
duas, uma: ou se muda o modelo
ou se muda o discurso.
Prefiro, por enquanto, ficar com
o discurso. Afinal, não é fantasia
dizer que esse governo, antes de
começar, esteve várias vezes
ameaçado pelo "golpe dos mercados" -se é que o dólar a R$ 4 e o
risco Brasil a 2.300 pontos não
configuraram já esse golpe, agravando a herança da inflação.
Nessas condições, como disse a
Hermano Alves, ainda de Lisboa,
o governador Brizola, na véspera
da volta do exílio, a prioridade
era falar manso "para tirar os índios da praia". Não seria, assim,
indulgência excessiva conceder
ao governo crédito e prazo razoáveis para, conforme anunciou,
"mudar com coragem e cuidado
(...) tendo consciência de que a
mudança é um processo gradativo e continuado (...) para que o
resultado seja duradouro".
A fim de poder mudar aos poucos, é preciso não abrir mão da
possibilidade de escolher. É nisso
que o discurso inova, ao declarar:
"Essencial em todos esses foros"
(Alca, Mercosul, União Européia,
Organização Mundial do Comércio) "é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas
de desenvolvimento nos campos
social e regional, de ambiente,
agrícola, industrial e tecnológico". A verdade contida na frase
soa tão evidente que não me surpreende tivesse ela passado despercebida aos comentaristas desavisados, que provavelmente a
julgaram inócua. Diversa é a reação dos iniciados nas negociações
comerciais, cônscios de que "essas
negociações (...) hoje em dia vão
muito além de meras reduções tarifárias e englobam um amplo espectro normativo". E o discurso
conclui: "Estaremos atentos para
que (as) negociações não criem
restrições inaceitáveis ao direito
soberano do povo brasileiro de
decidir sobre seu modelo de desenvolvimento".
São palavras fortes, necessárias
e bem-vindas. Ninguém se iluda,
porém. Se aplicadas com firmeza,
elas se chocarão com os interesses
de parceiros poderosos e não facilitarão as negociações em curso.
Com efeito, tanto na Alca como
na OMC, boa parte, se não a
maioria, das propostas dos EUA e
da Europa se destina justamente
a estreitar a margem de escolha
de eventuais concorrentes futuros, como o Brasil, a China, a Índia. Esse é, em particular, o caso
das normas sobre atividades regulatórias em serviços, investimentos, propriedade intelectual,
concorrência e compras governamentais, entre outras.
Não se trata, como se poderia
imaginar, de eventualidade hipotética e futura. Diferentemente
disso, é algo que já vem ocorrendo, pelo menos desde a Rodada
Tóquio do Gatt, quando se proibiram quase todos os subsídios para
exportações de manufaturas então em uso no Brasil (mantendo
os agrícolas praticados pelos ricos). A Rodada Uruguai estendeu
as restrições à propriedade intelectual (patentes de remédios, por
exemplo) e às medidas de investimento relacionadas ao comércio
(Trims, no jargão dos especialistas). Estas últimas tornariam impossível instalar hoje a indústria
automobilística no Brasil, se Juscelino não o tivesse feito há 50
anos. A razão é simples: essa instalação só ocorreu mediante a
troca da "reserva de mercado" pela obrigação das montadoras de
fabricarem no país uma certa
porcentagem dos carros. É o chamado "índice de nacionalização"
ou "conteúdo local", na língua da
OMC. Pois bem, em decorrência
do Trims, essa exigência é agora
proibida. Se a restrição tivesse sido adotada há mais tempo, não
teriam existido a indústria do
ABC nem o sindicato de metalúrgicos que deu origem à carreira
de Lula, o que seria pena.
A história não termina aí. A indústria automobilística brasileira
continua a sobreviver apenas
porque se conseguiu na OMC
uma prorrogação do prazo das
novas regras. O Brasil e a Índia
apresentaram proposta para a revisão definitiva dessa norma de
arrocho dentro da discussão da
implementação da Rodada Uruguai, com prazo de decisão até
dezembro de 2002. O prazo passou sem que os poderosos se comovessem; para eles, não há razão para voltar atrás. O mesmo
ocorreu com a questão das patentes para remédios e as necessidades de saúde pública. Apesar da
vitória obtida com a declaração
sobre o tema em Doha, a oposição
da indústria farmacêutica americana e suíça impediu um acordo
final, e as pressões se intensificarão nas próximas semanas para
que o Brasil e outros subdesenvolvidos aceitem renunciar ao que
haviam conquistado com o apoio
da opinião pública mundial.
Quase tudo o que agora é proibido foi largamente utilizado pelos desenvolvidos quando eles se
encontravam em estágio de desenvolvimento semelhante ao
nosso. A Suíça, por exemplo, assim como o Japão e a Itália, até o
fim dos anos 60, não reconheciam
patentes para remédios. Quando
consolidaram suas indústrias farmacêuticas, resolveram proibir
aos subdesenvolvidos fazer o que
eles mesmos haviam feito. É a essa prática hipócrita que os negociadores denominam "chutar a
escada" ("kick the ladder"), isto é,
uma vez que se chega ao topo,
muda-se a lei a fim de impedir
que outros utilizem políticas que
os novos ricos usaram e abusaram no passado. Colocar essas escadas de volta não será fácil, mas
ao menos o discurso promete tentar evitar que se retirem as poucas
escadas que sobraram. Como, para dar exemplo de situação mencionada na campanha pelo novo
presidente, a possibilidade de
conceder preferência à indústria
nacional na encomenda de plataformas para a Petrobras. No momento, essa possibilidade ainda
existe porque nunca aderimos ao
código sobre compras governamentais da Rodada Tóquio (só
pouco mais de 20 dos mais de 140
membros da OMC o fizeram).
Nas negociações da OMC, no entanto, os europeus pressionam
para incluir o tema. O mesmo fazem na Alca os americanos, apesar da lei "Buy American" e das
práticas contrárias de seus Estados. Se tiverem êxito essas pressões para reduzir ainda mais a
margem de manobra, esse será
mais um assunto que terá de sair
do discurso de Lula.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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