São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Chutando a escada

RUBENS RICUPERO

O forte, o original, o importante no discurso da posse é a defesa do direito de buscar um modelo próprio de desenvolvimento. É verdade que o discurso não se aventura muito em definir qual seria precisamente esse modelo. Alguns começam mesmo a desconfiar de que o continuísmo em economia é mais que mera tática inicial. Veríssimo chega a advertir, em sua coluna de quinta-feira: "Por enquanto, na área econômica, só o que se ouviu até agora é que o tal pensamento único não era único porque suas alternativas eram desconsideradas, era único porque não tinha alternativa mesmo".
Pode ser, mas acho difícil conservar a política econômica por muito tempo. Como, de fato, conciliá-la com a inapelável condenação que abre o discurso: "Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome (...) diante do impasse econômico, social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar(...)"? Ora, o modelo e essa política que se pretende continuar são inseparáveis porque um é a causa do outro. Como não se pode, ao mesmo tempo, afirmar uma coisa e seu contrário, de duas, uma: ou se muda o modelo ou se muda o discurso.
Prefiro, por enquanto, ficar com o discurso. Afinal, não é fantasia dizer que esse governo, antes de começar, esteve várias vezes ameaçado pelo "golpe dos mercados" -se é que o dólar a R$ 4 e o risco Brasil a 2.300 pontos não configuraram já esse golpe, agravando a herança da inflação. Nessas condições, como disse a Hermano Alves, ainda de Lisboa, o governador Brizola, na véspera da volta do exílio, a prioridade era falar manso "para tirar os índios da praia". Não seria, assim, indulgência excessiva conceder ao governo crédito e prazo razoáveis para, conforme anunciou, "mudar com coragem e cuidado (...) tendo consciência de que a mudança é um processo gradativo e continuado (...) para que o resultado seja duradouro".
A fim de poder mudar aos poucos, é preciso não abrir mão da possibilidade de escolher. É nisso que o discurso inova, ao declarar: "Essencial em todos esses foros" (Alca, Mercosul, União Européia, Organização Mundial do Comércio) "é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de ambiente, agrícola, industrial e tecnológico". A verdade contida na frase soa tão evidente que não me surpreende tivesse ela passado despercebida aos comentaristas desavisados, que provavelmente a julgaram inócua. Diversa é a reação dos iniciados nas negociações comerciais, cônscios de que "essas negociações (...) hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e englobam um amplo espectro normativo". E o discurso conclui: "Estaremos atentos para que (as) negociações não criem restrições inaceitáveis ao direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento".
São palavras fortes, necessárias e bem-vindas. Ninguém se iluda, porém. Se aplicadas com firmeza, elas se chocarão com os interesses de parceiros poderosos e não facilitarão as negociações em curso. Com efeito, tanto na Alca como na OMC, boa parte, se não a maioria, das propostas dos EUA e da Europa se destina justamente a estreitar a margem de escolha de eventuais concorrentes futuros, como o Brasil, a China, a Índia. Esse é, em particular, o caso das normas sobre atividades regulatórias em serviços, investimentos, propriedade intelectual, concorrência e compras governamentais, entre outras.
Não se trata, como se poderia imaginar, de eventualidade hipotética e futura. Diferentemente disso, é algo que já vem ocorrendo, pelo menos desde a Rodada Tóquio do Gatt, quando se proibiram quase todos os subsídios para exportações de manufaturas então em uso no Brasil (mantendo os agrícolas praticados pelos ricos). A Rodada Uruguai estendeu as restrições à propriedade intelectual (patentes de remédios, por exemplo) e às medidas de investimento relacionadas ao comércio (Trims, no jargão dos especialistas). Estas últimas tornariam impossível instalar hoje a indústria automobilística no Brasil, se Juscelino não o tivesse feito há 50 anos. A razão é simples: essa instalação só ocorreu mediante a troca da "reserva de mercado" pela obrigação das montadoras de fabricarem no país uma certa porcentagem dos carros. É o chamado "índice de nacionalização" ou "conteúdo local", na língua da OMC. Pois bem, em decorrência do Trims, essa exigência é agora proibida. Se a restrição tivesse sido adotada há mais tempo, não teriam existido a indústria do ABC nem o sindicato de metalúrgicos que deu origem à carreira de Lula, o que seria pena.
A história não termina aí. A indústria automobilística brasileira continua a sobreviver apenas porque se conseguiu na OMC uma prorrogação do prazo das novas regras. O Brasil e a Índia apresentaram proposta para a revisão definitiva dessa norma de arrocho dentro da discussão da implementação da Rodada Uruguai, com prazo de decisão até dezembro de 2002. O prazo passou sem que os poderosos se comovessem; para eles, não há razão para voltar atrás. O mesmo ocorreu com a questão das patentes para remédios e as necessidades de saúde pública. Apesar da vitória obtida com a declaração sobre o tema em Doha, a oposição da indústria farmacêutica americana e suíça impediu um acordo final, e as pressões se intensificarão nas próximas semanas para que o Brasil e outros subdesenvolvidos aceitem renunciar ao que haviam conquistado com o apoio da opinião pública mundial.
Quase tudo o que agora é proibido foi largamente utilizado pelos desenvolvidos quando eles se encontravam em estágio de desenvolvimento semelhante ao nosso. A Suíça, por exemplo, assim como o Japão e a Itália, até o fim dos anos 60, não reconheciam patentes para remédios. Quando consolidaram suas indústrias farmacêuticas, resolveram proibir aos subdesenvolvidos fazer o que eles mesmos haviam feito. É a essa prática hipócrita que os negociadores denominam "chutar a escada" ("kick the ladder"), isto é, uma vez que se chega ao topo, muda-se a lei a fim de impedir que outros utilizem políticas que os novos ricos usaram e abusaram no passado. Colocar essas escadas de volta não será fácil, mas ao menos o discurso promete tentar evitar que se retirem as poucas escadas que sobraram. Como, para dar exemplo de situação mencionada na campanha pelo novo presidente, a possibilidade de conceder preferência à indústria nacional na encomenda de plataformas para a Petrobras. No momento, essa possibilidade ainda existe porque nunca aderimos ao código sobre compras governamentais da Rodada Tóquio (só pouco mais de 20 dos mais de 140 membros da OMC o fizeram). Nas negociações da OMC, no entanto, os europeus pressionam para incluir o tema. O mesmo fazem na Alca os americanos, apesar da lei "Buy American" e das práticas contrárias de seus Estados. Se tiverem êxito essas pressões para reduzir ainda mais a margem de manobra, esse será mais um assunto que terá de sair do discurso de Lula.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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