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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os riscos da travessia
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Nos oito anos de "política
modernizadora", o governo
FHC procurou executar diligentemente a agenda reformista do regime dólar-Wall Street: abertura
financeira, desregulamentação,
privatizações e flexibilização dos
mercados de trabalho.
Durante os dois mandatos, nossos ouvidos foram emprenhados
pela retórica do "Novo Renascimento", pelas teorias "neobobas"
da integração competitiva e por
tolices sobre as virtudes da taxa
de câmbio valorizada. Essa mixórdia ideológica e pseudocientífica era supostamente portadora
de estímulos aos ganhos de produtividade e de bem-estar. Mas,
na vida real, teve apenas um propósito: armar outro ciclo de endividamento externo e de enriquecimento rápido da piranhagem
daqui e de fora. No momento
azado, escapuliram com a grana.
Dessa vez, os bons de bico -nacionais e estrangeiros- não levaram apenas o dinheiro e as jóias
da casa, como fizeram na crise
cambial dos anos 80. Carregaram
os móveis, arrancaram as pias, as
banheiras e a louça sanitária. Depois de tais peripécias, ainda têm
a cara-de-pau de reivindicar a
posição de guardiões da estabilidade e das boas políticas, enquanto mandam a conta do desemprego e da queda dos salários
para os que moram nos fundos e
nos porões.
Não pense o leitor que os responsáveis por esse fiasco financeiro pretendem penitenciar-se ou
arrepender-se do que disseram ou
fizeram. Desde o período eleitoral, nos "círculos bem informados", foi acionada a operação
"sossega leão". Os que se autoproclamam entendidos na matéria
garantem: qualquer movimento
divergente da cartilha oficial será
punido com execução sumária do
transgressor pelo pelotão de fuzilamento dos "mercados".
O pior é que estão certos. Enquanto permanecer a dependência do financiamento externo, há
que esperar o bom humor dos
mercados para garantir a estabilidade do câmbio e o cumprimento das metas de inflação. Resta saber: 1) se, restaurada a fidúcia dos
mercados globais, o novo governo
terá forças para resistir às tentações do endividamento fácil e 2 )
se a melhoria das condições externas vai ser utilizada para liberar
a política econômica dos constrangimentos atuais.
O último grito nos laboratórios
da sabedoria financeira nativa é
a adoção progressiva da conversibilidade do real com taxas flutuantes. Os que advogam tal providência são adeptos da idéia de
que, no mundo das finanças internacionais, todos os gatos são
pardos: não parecem levar em
conta que o sistema monetário
global é constituído por uma hierarquia de moedas, umas mais
"líquidas" do que outras. É improvável, por exemplo, que um
exportador alemão e um importador japonês escolham o real como moeda de transação nos seus
negócios ou que, no mercado de
Nova York, surjam investidores
ansiosos para adquirir títulos de
dívida denominados em reais.
Para as economias de moeda
sem reputação e "ilíquidas", a
mobilidade de capitais tende a
produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações
abruptas. Ainda que a adoção de
um regime de taxa de câmbio flutuante seja capaz de amenizar o
baque, as autoridades monetárias do país de "moeda fraca" poderão ser obrigadas a vender reservas ou a subir as taxas de juros
para estabilizar o curso do câmbio dentro de limites "seguros".
Pois a razão maior do fracasso
econômico de FHC foi não ter
-vamos ser generosos- compreendido as armadilhas da abertura financeira. Daí nasceu uma
economia sem instrumentos de
governança, sem liberdade de utilizar instrumentos fiscais e monetários compatíveis com o crescimento e incapaz de engendrar estratégias de longo prazo.
Ainda que imperfeitamente, a
coordenação de longo prazo foi
executada no Brasil "desenvolvimentista" pelo núcleo produtivo
estatal e pelos bancos públicos até
a malfadada crise da dívida externa do início dos anos 80. A relativa capacidade de sustentar
uma aproximação competitiva
dos padrões do mundo industrializado foi, em alguma medida,
produzida por essa forma de organização do mercado capitalista. As principais deficiências do
"modelo capitalista brasileiro"
-além da escandalosa desigualdade social- estavam nas formas atrasadas de organização
empresarial, na baixa capacidade de inovação tecnológica do sistema produtivo e na inapetência
do sistema de crédito e do mercado de capitais em buscar instrumentos adequados para financiar
projetos de maturação mais longa. Esse conjunto de "falhas" impediu o fortalecimento patrimonial e financeiro das empresas
nacionais. Muita gente sabe que
essas deficiências foram responsáveis, entre outras coisas, pela excessiva dependência do financiamento externo. O processo de privatização teria sido uma boa
oportunidade para reestruturar e
centralizar o capital nacional, colocando a grande empresa brasileira num nível intermediário de
competitividade, com chances de
avançar para patamares mais
elevados. Imagino que alguns dos
responsáveis pelo programa de
transferência de ativos públicos
para o controle privado tenham
pensado nisso. Foram atropelados pelas consequências de um regime cambial absurdo e pelas
idéias toscas sobre a globalização,
duas pérolas do ex-presidente.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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