São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os riscos da travessia

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Nos oito anos de "política modernizadora", o governo FHC procurou executar diligentemente a agenda reformista do regime dólar-Wall Street: abertura financeira, desregulamentação, privatizações e flexibilização dos mercados de trabalho.
Durante os dois mandatos, nossos ouvidos foram emprenhados pela retórica do "Novo Renascimento", pelas teorias "neobobas" da integração competitiva e por tolices sobre as virtudes da taxa de câmbio valorizada. Essa mixórdia ideológica e pseudocientífica era supostamente portadora de estímulos aos ganhos de produtividade e de bem-estar. Mas, na vida real, teve apenas um propósito: armar outro ciclo de endividamento externo e de enriquecimento rápido da piranhagem daqui e de fora. No momento azado, escapuliram com a grana.
Dessa vez, os bons de bico -nacionais e estrangeiros- não levaram apenas o dinheiro e as jóias da casa, como fizeram na crise cambial dos anos 80. Carregaram os móveis, arrancaram as pias, as banheiras e a louça sanitária. Depois de tais peripécias, ainda têm a cara-de-pau de reivindicar a posição de guardiões da estabilidade e das boas políticas, enquanto mandam a conta do desemprego e da queda dos salários para os que moram nos fundos e nos porões.
Não pense o leitor que os responsáveis por esse fiasco financeiro pretendem penitenciar-se ou arrepender-se do que disseram ou fizeram. Desde o período eleitoral, nos "círculos bem informados", foi acionada a operação "sossega leão". Os que se autoproclamam entendidos na matéria garantem: qualquer movimento divergente da cartilha oficial será punido com execução sumária do transgressor pelo pelotão de fuzilamento dos "mercados".
O pior é que estão certos. Enquanto permanecer a dependência do financiamento externo, há que esperar o bom humor dos mercados para garantir a estabilidade do câmbio e o cumprimento das metas de inflação. Resta saber: 1) se, restaurada a fidúcia dos mercados globais, o novo governo terá forças para resistir às tentações do endividamento fácil e 2 ) se a melhoria das condições externas vai ser utilizada para liberar a política econômica dos constrangimentos atuais.
O último grito nos laboratórios da sabedoria financeira nativa é a adoção progressiva da conversibilidade do real com taxas flutuantes. Os que advogam tal providência são adeptos da idéia de que, no mundo das finanças internacionais, todos os gatos são pardos: não parecem levar em conta que o sistema monetário global é constituído por uma hierarquia de moedas, umas mais "líquidas" do que outras. É improvável, por exemplo, que um exportador alemão e um importador japonês escolham o real como moeda de transação nos seus negócios ou que, no mercado de Nova York, surjam investidores ansiosos para adquirir títulos de dívida denominados em reais.
Para as economias de moeda sem reputação e "ilíquidas", a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Ainda que a adoção de um regime de taxa de câmbio flutuante seja capaz de amenizar o baque, as autoridades monetárias do país de "moeda fraca" poderão ser obrigadas a vender reservas ou a subir as taxas de juros para estabilizar o curso do câmbio dentro de limites "seguros".
Pois a razão maior do fracasso econômico de FHC foi não ter -vamos ser generosos- compreendido as armadilhas da abertura financeira. Daí nasceu uma economia sem instrumentos de governança, sem liberdade de utilizar instrumentos fiscais e monetários compatíveis com o crescimento e incapaz de engendrar estratégias de longo prazo.
Ainda que imperfeitamente, a coordenação de longo prazo foi executada no Brasil "desenvolvimentista" pelo núcleo produtivo estatal e pelos bancos públicos até a malfadada crise da dívida externa do início dos anos 80. A relativa capacidade de sustentar uma aproximação competitiva dos padrões do mundo industrializado foi, em alguma medida, produzida por essa forma de organização do mercado capitalista. As principais deficiências do "modelo capitalista brasileiro" -além da escandalosa desigualdade social- estavam nas formas atrasadas de organização empresarial, na baixa capacidade de inovação tecnológica do sistema produtivo e na inapetência do sistema de crédito e do mercado de capitais em buscar instrumentos adequados para financiar projetos de maturação mais longa. Esse conjunto de "falhas" impediu o fortalecimento patrimonial e financeiro das empresas nacionais. Muita gente sabe que essas deficiências foram responsáveis, entre outras coisas, pela excessiva dependência do financiamento externo. O processo de privatização teria sido uma boa oportunidade para reestruturar e centralizar o capital nacional, colocando a grande empresa brasileira num nível intermediário de competitividade, com chances de avançar para patamares mais elevados. Imagino que alguns dos responsáveis pelo programa de transferência de ativos públicos para o controle privado tenham pensado nisso. Foram atropelados pelas consequências de um regime cambial absurdo e pelas idéias toscas sobre a globalização, duas pérolas do ex-presidente.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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