São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

O grande poeta da música

O brinde de final de ano é inesquecível. Uma caixa com três CDs de Elizeth Cardoso, bancada pela seguradora Icatu Hartford. Por volta de 1980 escrevi uma crítica sobre um LP de Elizeth produzido pelo grande Hermínio Bello de Carvalho. Na época, me pareceu que a voz divina estava cansada, e que era ousadia colocá-la em cantos à capela (voz em estado puro, sem acompanhamento). Na biografia de Elizeth, Sérgio Cabral me passa branda admoestação, sustentando que a gravação era precária, posto que ao vivo, não a voz. De fato, ouvindo o terceiro CD, "Luz e Esplendor", a voz que o tempo tornou mais grave, quase em fim de vida, continua soberba.
Mas o esplendor da luz não vem apenas da voz de Elizeth, do violão do inesquecível amigo Raphael Rabello, mas das letras de Paulo César Pinheiro. Especialmente "Cabelos Brancos", composição sua com seu maior parceiro, Baden Powell, quase um réquiem ao amigo que se destruiu no álcool.
"Toda minha vida foi de sonho e ilusão / Mas fiz somente aquilo que ordenou meu coração. / Se eu pudesse eu voltaria ao que eu vivi / Tenho até saudades dos momentos que eu sofri", acompanhado pelo violão extraordinário de Raphael e pelo celo de Márcio Mallard. As lembranças se dirigiram imediatamente para o "Refém da Solidão", primeiro sucesso amplo da dupla, lançado no fim dos anos 60 e um de nossos hinos nas serenatas poços-caldenses. "Quem da solidão fez seu bem / Vai terminar seu refém / E a vida passa também / Vira uma certa paz / Que não faz nem desfaz / Tornando as coisas banais / E o ser humano incapaz de prosseguir / Sem ter aonde ir."
Mas que poeta extraordinário! Fossem duas, três obras-primas, mas são centenas. Fossem 10 ou 15 anos, mas são mais de 35 anos de produção ininterrupta de alta qualidade. Por onde se escarafunche se encontrarão obras-primas de Paulo César com os mais variados parceiros. Dia desses, meu parceiro e amigo Vicente Barreto mostrou um clássico composto com o poeta, uma canção linda, sobre o abandono, a solidão... E inédita. Segundo Barreto, Paulo César tem todas as músicas arquivadas e organizadas e, periodicamente, presenteia os parceiros com acervos dos quais nem eles próprios se lembravam.
Só com o mineiro Sérgio Santos, Paulo César tem mais de 200 composições inéditas. No ano passado, ambos lançaram "Áfrico", uma monumental produção com temas africanos, bebidos diretamente em Gilberto Freyre, que ousaria qualificar de a mais relevante obra da música popular brasileira contemporânea, à altura dos sambas afro de Baden e de Vinícius.
E foi com Baden que Paulo César iniciou sua carreira. Seu primeiro momento, aliás, foi uma letra inspirada em Guimarães Rosa, se não me engano em um daqueles festivais da TV Globo no final dos anos 60. Em seguida, teve a ousadia de se tornar parceiro de Baden, logo após terminada sua parceria clássica com Vinícius. O jovem poeta ainda estava se formando, as comparações com Vinícius seriam inevitáveis, mas o que compuseram foi de tão alta qualidade que muitas vezes se tem que conferir as faixas para saber de quem é cada obra-prima. É desse período da dupla, além do "Refém da Solidão", o "Violão Vadio", a música que mais me recorda Baden.
Depois, quando Baden partiu para a Europa, Paulo César incorporou seu fraseado e o transmitiu às suas parcerias seguintes: Eduardo Gudin, com quem compôs sambas notáveis, e depois com João Nogueira. Aí não parou mais. No final dos anos 70 já tinha o devido reconhecimento de ser um dos maiores letristas de toda a história da música popular brasileira.
"São tantas as lembranças / Povoando o coração / Que eu guardo ainda comigo / Meus amores, meus amigos / Meus desejos mais antigos / Meus pedidos de perdão / Meus atos de ingratidão / Meus prantos, meus espantos diante da vida / Meus instantes de tristeza e solidão / Mas fica uma certeza de que nada foi em vão."
Na voz de Elizeth, a delicadeza do poeta, transformando o processo de autodestruição de Baden em jóia pura me embala nestas noites paulistanas, antes que os feriados acabem e o trânsito e o barulho voltem a se impor sobre a poesia.

E-mail -
lnassif@uol.com.br



Texto Anterior: Lições conteporâneas: Os riscos da travessia
Próximo Texto: Combustíveis: Petrobras seguirá fixando preço na refinaria
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.