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LUÍS NASSIF
O grande poeta da música
O brinde de final de ano é
inesquecível. Uma caixa
com três CDs de Elizeth Cardoso, bancada pela seguradora
Icatu Hartford. Por volta de
1980 escrevi uma crítica sobre
um LP de Elizeth produzido pelo grande Hermínio Bello de
Carvalho. Na época, me pareceu
que a voz divina estava cansada, e que era ousadia colocá-la
em cantos à capela (voz em estado puro, sem acompanhamento). Na biografia de Elizeth, Sérgio Cabral me passa branda admoestação, sustentando que a
gravação era precária, posto
que ao vivo, não a voz. De fato,
ouvindo o terceiro CD, "Luz e
Esplendor", a voz que o tempo
tornou mais grave, quase em
fim de vida, continua soberba.
Mas o esplendor da luz não
vem apenas da voz de Elizeth,
do violão do inesquecível amigo
Raphael Rabello, mas das letras
de Paulo César Pinheiro. Especialmente "Cabelos Brancos",
composição sua com seu maior
parceiro, Baden Powell, quase
um réquiem ao amigo que se
destruiu no álcool.
"Toda minha vida foi de sonho e ilusão / Mas fiz somente
aquilo que ordenou meu coração. / Se eu pudesse eu voltaria
ao que eu vivi / Tenho até saudades dos momentos que eu sofri", acompanhado pelo violão
extraordinário de Raphael e pelo celo de Márcio Mallard. As
lembranças se dirigiram imediatamente para o "Refém da
Solidão", primeiro sucesso amplo da dupla, lançado no fim dos
anos 60 e um de nossos hinos nas
serenatas poços-caldenses.
"Quem da solidão fez seu bem /
Vai terminar seu refém / E a vida passa também / Vira uma
certa paz / Que não faz nem desfaz / Tornando as coisas banais /
E o ser humano incapaz de prosseguir / Sem ter aonde ir."
Mas que poeta extraordinário!
Fossem duas, três obras-primas,
mas são centenas. Fossem 10 ou
15 anos, mas são mais de 35 anos
de produção ininterrupta de alta qualidade. Por onde se escarafunche se encontrarão obras-primas de Paulo César com os
mais variados parceiros. Dia
desses, meu parceiro e amigo Vicente Barreto mostrou um clássico composto com o poeta, uma
canção linda, sobre o abandono,
a solidão... E inédita. Segundo
Barreto, Paulo César tem todas
as músicas arquivadas e organizadas e, periodicamente, presenteia os parceiros com acervos dos
quais nem eles próprios se lembravam.
Só com o mineiro Sérgio Santos, Paulo César tem mais de 200
composições inéditas. No ano
passado, ambos lançaram "Áfrico", uma monumental produção com temas africanos, bebidos diretamente em Gilberto
Freyre, que ousaria qualificar de
a mais relevante obra da música
popular brasileira contemporânea, à altura dos sambas afro de
Baden e de Vinícius.
E foi com Baden que Paulo César iniciou sua carreira. Seu primeiro momento, aliás, foi uma
letra inspirada em Guimarães
Rosa, se não me engano em um
daqueles festivais da TV Globo
no final dos anos 60. Em seguida, teve a ousadia de se tornar
parceiro de Baden, logo após terminada sua parceria clássica
com Vinícius. O jovem poeta
ainda estava se formando, as
comparações com Vinícius seriam inevitáveis, mas o que
compuseram foi de tão alta qualidade que muitas vezes se tem
que conferir as faixas para saber
de quem é cada obra-prima. É
desse período da dupla, além do
"Refém da Solidão", o "Violão
Vadio", a música que mais me
recorda Baden.
Depois, quando Baden partiu
para a Europa, Paulo César incorporou seu fraseado e o transmitiu às suas parcerias seguintes: Eduardo Gudin, com quem
compôs sambas notáveis, e depois com João Nogueira. Aí não
parou mais. No final dos anos 70
já tinha o devido reconhecimento de ser um dos maiores letristas de toda a história da música
popular brasileira.
"São tantas as lembranças /
Povoando o coração / Que eu
guardo ainda comigo / Meus
amores, meus amigos / Meus desejos mais antigos / Meus pedidos de perdão / Meus atos de ingratidão / Meus prantos, meus
espantos diante da vida / Meus
instantes de tristeza e solidão /
Mas fica uma certeza de que nada foi em vão."
Na voz de Elizeth, a delicadeza
do poeta, transformando o processo de autodestruição de Baden em jóia pura me embala
nestas noites paulistanas, antes
que os feriados acabem e o trânsito e o barulho voltem a se impor sobre a poesia.
E-mail -
lnassif@uol.com.br
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