São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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ANÁLISE / TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

Dinheiro some, e Vale do Silício enfrenta sua pior crise

Paul Sakuma/Associated Press
Clientes de loja em Palo Alto (Califórnia) testam jogos dos videogames XBox (esq.) e PlayStation 2


PAUL ABRAHAMS
DO "FINANCIAL TIMES"

Hoje, alguns dos maiores cartazes ao longo da estrada que corta o Vale do Silício são da Allied, empresa de mudanças que está atarefada transportando o excesso de mão-de-obra para fora da região. Desde o final de 2000 a região de San Francisco perdeu mais de 110 mil empregos. O condado (município) de Santa Clara, no coração do Vale do Silício, hoje tem um índice de desemprego de 7,6%, o maior da Califórnia.
Placas de "Aluga-se" estão surgindo por toda parte. Há vagas de sobra nos estacionamentos. O complexo de sete prédios que abrigava o Excite@home, provedor de serviços que pediu falência em setembro passado, continua vazio.
O Vale do Silício claramente está com problemas. Não é apenas o conjunto único de profissionais qualificados que está se dissipando. O investimento de capital de risco despencou 48% no primeiro semestre deste ano, segundo a PwC (PricewaterhouseCoopers). E, segundo dados obtidos pelo "Financial Times", a pesquisa e desenvolvimento corporativos também estão caíram a um timo anualizado de 5% no mesmo período.
Essas tendências levantam uma pergunta preocupante: a rapidez e a gravidade da depressão estão causando danos irreparáveis ao delicado ecossistema que alimentou a mistura única de inovação e espírito empreendedor do Vale na década de 90? Colocado de outra maneira: a recessão será cíclica ou o futuro da região como líder mundial em inovação tecnológica está ameaçado?
Vozes influentes começam a sugerir que o tipo de sucesso desfrutado até dois anos atrás pode ter terminado. "Esta é uma desaceleração brutal, a pior na história do setor de TI [tecnologia da informação] nos EUA", diz Larry Ellison, presidente e principal executivo da Oracle. "O Vale do Silício nunca mais será o mesmo."
John Goodrich, um dos fundadores da Wilson Sonsini Goodrich Rosati, principal firma de advocacia da região, concorda. "O Vale do Silício nunca mais será o que foi entre 1995 e 1999."

Sem fregueses
O norte da Califórnia sofreu recessões antes, mas nenhuma tão rápida, abrangente e duradoura quanto a atual. Quase todos os setores (equipamentos de telecomunicações, hardware e software empresarial, semicondutores, servidores e empresas pontocom) estão sofrendo. "Os clientes não estão comprando e não há um fim à vista", diz Vincent Tobkin, chefe de tecnologia global e telecomunicações da consultoria Bain.
O impacto sobre os rendimentos foi duro. A Merrill Lynch estima que o setor de tecnologia está perdendo mais dinheiro do que em qualquer momento de sua história. Os executivos estão examinando cada linha da contabilidade, incluindo P&D (pesquisa e desenvolvimento), o alimento vital da região.
No ano passado, apesar do início da recessão, as 30 maiores empresas de tecnologia na área da Baía de San Francisco ainda conseguiram aumentar a P&D, investindo um total de US$ 21,2 bilhões, um aumento anual de 2,4%. Na primeira metade deste ano, a maioria das 30 principais empresas cortou P&D em 5%, num total de US$ 11,9 bilhões. Para colocar a coisa em contexto: as empresas americanas em geral não registraram um corte em gastos de P&D desde 1960, quando a Fundação Nacional de Ciências começou a divulgar os dados.

Inovação em queda
"O que é tão preocupante é que esta foi uma depressão econômica branda, mas a desaceleração em gastos de P&D foi muito mais profunda do que durante a recessão de 1991", afirma Dan Wilson, economista do Federal Reserve (banco central dos EUA) em San Francisco.
Ainda mais abrupto é o declínio em outra importante fonte de investimentos em inovação o capital de risco. O capital de risco foi essencial para o sucesso do Vale do Silício, tentando engenheiros e marqueteiros a deixar empresas estabelecidas para criar novas companhias. Durante a segunda metade dos anos 90, muitos grandes grupos de TI, como a Cisco Systems, compraram empresas financiadas por capital de risco para adquirir sua tecnologia. Na verdade, elas terceirizaram a P&D.
Hoje, as novatas estão lutando para levantar capital. "O ano passado foi o primeiro na história da indústria do capital de risco em que os retornos foram negativos. Este ano parece que será igual", adverte Dixon Doll, um veterano há 30 anos no mercado e fundador da Doll Capital Management.
"Os obstáculos para as ofertas públicas iniciais de ações de tecnologia são enorme", afirma Doll. "Isso é inédito na história do nosso setor. Você pode ter uma companhia com faturamento entre US$ 30 milhões e US$ 40 milhões, e até rentável, mas você não consegue abrir o capital."
No primeiro semestre de 2000, no auge do boom, os capitalistas de risco investiram US$ 19,3 bilhões no Vale do Silício. No ano passado, no mesmo período, eles investiram apenas US$ 7,8 bilhões. No primeiro semestre deste ano, o número foi de apenas US$ 4,05 bilhões, segundo a PwC e a National Venture Capital Association.
O pouco dinheiro investido neste ano não vai para novatas, mas para companhias para as quais os fundos já alocaram capital. A esperança é mantê-las vivas até que o mercado de IPOs (ofertas públicas iniciais) ou fusões e aquisições se recupere.
Em dois anos, o investimento em inovação inicial por capitalistas de risco despencou 85%. No primeiro semestre deste ano, apenas US$ 646 milhões do capital de risco investido no Vale do Silício foram para novatas, comparados com US$ 2,25 bilhões no mesmo período do ano passado e US$ 4,29 bilhões no primeiro semestre de 2000.
"A falta de dinheiro inicial e para a primeira fase é realmente perturbadora", diz Goodrich, da Wilson Sonsini Goodrich Rosati. Uma medida dos danos prováveis é fornecida pelo Departamento de Patentes e Marcas Comerciais, que prevê que as inscrições nacionais para patentes subirão apenas 1,3% neste ano, comparadas com mais de 10% anuais desde 1996.
É claro que o Vale sofreu recessões antes, tendo sobrevivido a ciclos em defesa, calculadoras, computadores pessoais, semicondutores, biotecnologia, modems, software e equipamentos de rede. E é verdade que sua economia mantém uma notável resistência: a velocidade com que a força de trabalho, a terra e o capital são realocados é de tirar o fôlego.
A Baía de San Francisco ainda é um dos melhores lugares do mundo para se comercializar tecnologia, graças a seu acesso a engenheiros de primeira classe, universidades e capital. Mesmo enquanto as companhias falem, novas chegam para substituí-las. Recentemente, a Parthus, um grupo de irlandês de criação de semicondutores, e a ActivCard, uma companhia francesa de chips inteligentes, anunciaram sua intenção de se estabelecer ali.
"Nas circunstâncias mais sombrias, continuo muito otimista", diz Craig Conway, presidente e principal executivo da companhia de software empresarial Peoplesoft, e ele não é o único. Mas outros, em número crescente, temem que essa confiança possa ser exagerada.
"Os que acreditam que esta é apenas uma depressão cíclica estão loucos", diz Ellison. "Eles não conseguem ver o que está acontecendo diante de seus olhos. "Havia uma crença infantil de que as coisas sempre subiriam. Isso é insensato. Nosso setor vai amadurecer, e, quando uma coisa amadurece, a inovação diminui."

Capital à míngua
Como diz Stewart Gross, diretor-executivo do Warburg Pincus, grupo privado de investimentos: "A escala dos danos infligidos ao Vale do Silício dependerá em parte de quanto tempo vai durar a depressão. Se ela continuar, sem dúvida terá um efeito sério sobre a inovação."
Em curto prazo, como quase todo mundo concorda, as coisas provavelmente vão piorar. As grandes empresas parecem estar digerindo a tecnologia que já têm antes de investir na próxima onda. "Nos últimos dez anos, houve grandes saltos em inovação. Estamos esperando que o cliente acompanhe", diz Tracy Lefteroff, analista da PwC.
Mas somente os otimistas continuam confiantes em que, quando a economia americana e a rentabilidade corporativa se recuperarem, os gastos em tecnologia voltarão a crescer em dois dígitos. Para outros, a queda nos gastos em TI é causada não apenas pela recessão, mas por um desilusão indefinida na própria inovação.
"Não há uma febre de empresas pontocom e nenhuma grande inovação tão atraente que você precise investir. Não há catalisador, nenhum "santo graal" tecnológico", afirma Rick Sherlund, analista de software na Goldman Sachs. "O crescimento do rendimento anual na indústria de software talvez não tenha mais dois dígitos, e, possivelmente, será tão baixo quanto 6% a 7% ao ano. Podemos estar num período prolongado de crescimento anêmico."


Tradução de Luiz Roberto Gonçalves

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