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São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

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ARTIGO

Lembranças de Roberto Marinho

MARIO SERGIO CONTI
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM PARIS

Na tarde da segunda-feira do Carnaval de 1994, João Roberto Marinho chegou com uma fita de vídeo à casa do pai, na praia da Mombaça, em Angra dos Reis. João Roberto conversou com alguns dos convidados para o almoço, os governadores Ciro Gomes, do Ceará, e Luiz Antônio Fleury Filho, de São Paulo. E logo foi com Roberto Marinho para uma sala onde havia um aparelho de vídeo.
A fita continha cenas gravadas pela Globo, na noite anterior, no Sambódromo. Elas mostravam o presidente Itamar Franco ao lado da vedete Lílian Ramos, que, embalada, sambava sem calcinha.
Roberto Marinho viu a fita inteira sem um sorriso. João Roberto queria saber se o pai achava que as cenas deveriam ser levadas ao ar pela Globo. "Vamos mostrar tudo no "Jornal Nacional" de hoje, sem comentários", disse o dono da emissora. Pouco depois, Roberto Marinho me disse: "Esse Itamar é um cafajeste".
Foi uma das raríssimas vezes, em quase 20 anos de convívio, que vi Roberto Marinho irritado. E foi a última vez que o vi exercer o poder em plenitude. O poder de levar às casas de praticamente todos os brasileiros uma versão da realidade (a jornalística) e suas variadas imagens ficcionais (as novelas). Ele tinha então 89 anos.
 
Três anos depois, num outro Carnaval, na mesma casa, já não havia nenhum político. Eles foram os primeiros a perceber que o patriarca da Globo paulatinamente deixava de exercer o poder, na medida em que diminuía a sua capacidade de concentração e de entendimento das nuances da política nacional.
Roberto Marinho assistiu a um pedaço do desfile do Sambódromo. Ficou impressionado com a nudez generalizada e com as cenas em câmera lenta de requebrados lascivos. "Mas você tem certeza que a televisão está mesmo na Globo?", perguntou a Lily, sua mulher. "Então vou ligar para o Boni", disse, referindo-se ao vice-presidente executivo da rede, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho. Depois, achou melhor telefonar no dia seguinte. Acabou não telefonando. A Globo andava sozinha, sem ele.
 
O dono da Globo era um homem afável e modesto. Nunca levantava a voz ou dizia palavrões. Detestava reuniões, relatórios, analistas, discussões estratégicas. Preferia contar e ouvir casos, em longas conversas a dois. Só se vangloriava de seus feitos esportivos, como a vez em que ficou três minutos no fundo do mar e voltou à tona com uma garoupa gigantesca. "Devo ter batido algum recorde", dizia.
Gostava de mulheres: de contemplá-las, seduzi-las, ouvi-las e fazer-lhes galanteios. "Com essa calça branca e essa blusa estampada com motivos roxos, você está parecendo uma orquídea no seu esplendor, Lily", disse certa vez. Fora um matador na juventude (casou a primeira das três vezes aos 42 anos). Tinha uma garçonnière muito frequentada.
Gostava de ler jornais. Todas as manhãs, lia "O Globo" de cabo a rabo, dava uma olhada na concorrência, o finado "Jornal do Brasil", e dedicava atenção especial à Folha. Nunca o vi com um livro na mão. Mas sempre citava Charles Dickens, uma das suas admirações da juventude.
Gostava da natureza. De nadar, cavalgar, pescar, ver bichos, passear em jardins. Na casa de Angra ou na mansão no Cosme Velho, no Rio, dizia: "Vamos sentar lá perto do jardim para ver o balé dos flamingos". Os flamingos, da África do Sul, valsavam para lá e para cá, para o renovado deslumbre de Roberto Marinho.
 
Roberto Marinho não gostava de política. Gostava de políticos. De políticos de nomeada. Não tinha paciência para o jogo de partidos, bancadas, leis e assembléias. Preferia ouvi-los a dar-lhes conselhos. Fazia então as suas escolhas. Achava imperativo que os órgãos de imprensa escolhessem e apoiassem políticos.
Aprendera a lição na juventude. Com a morte do pai, em 1925, não se sentira em condições de dirigir "O Globo", fundado semanas antes. Passou a tarefa para Euricles de Mattos (1888-1931), a quem obedecia sem discutir. Nas eleições de 1930, Mattos dizia ao patrão e subordinado que o jornal não deveria apoiar nenhum candidato. "Júlio Prestes e Getúlio Vargas são vinho da mesma pipa", lhe falava Mattos. Roberto Marinho aquiescia a contragosto. Achava que Getúlio e Júlio Prestes eram vinhos de pipas bem diferentes, que um era melhor e o outro, pior. "O Globo" acabou apoiando a Revolução de 30.
Roberto Marinho fez com que seu império jornalístico apoiasse Getúlio, Dutra, Jânio, Castello Branco, Costa e Silva, a junta militar, Geisel, Figueiredo, Tancredo, Sarney, Collor e Fernando Henrique. Mas quem lhe deu concessões de televisão foram Juscelino, que ele criticava, e João Goulart, contra quem conspirou para derrubar da Presidência.
 
Em 1989, Roberto Marinho queria apoiar a campanha de Jânio Quadros à Presidência. Mas Jânio ficou doente e não saiu candidato. Tentou então apoiar Orestes Quércia, que preferiu que Ulysses Guimarães fosse o candidato do PMDB. Ficou sem candidato. Uma situação perigosa, pois Leonel Brizola era candidato e tinha chances reais de vencer. Tinha horror a Brizola. Nada de pessoal. Só que o político garantira que, eleito, seu primeiro ato seria acabar com o poder da Globo. "Eu quero apoiar alguém que ganhe do Brizola", disse inúmeras vezes.
Por sugestão de Jorge Serpa, deu ampla divulgação ao discurso de despedida do Senado de Mário Covas, que assumiu a candidatura dos tucanos. Não gostava de Covas nem de suas idéias, que achava conservadoras e nacionalistas. E não achava que tivesse condições de vencer Brizola.
Havia Fernando Collor. Mas o dono da Globo não gostava do pai, do irmão nem do próprio Collor. Tivera negócios com o senador Arnon de Mello, que foi seu sócio na construção do primeiro shopping center do Rio, em Copacabana. Sempre suspeitou que Arnon lhe passara a perna.
O primogênito de Arnon, Leopoldo, fora diretor regional da Rede Globo em São Paulo, e passou por uma investigação interna que culminou em sua demissão. Por fim, considerava Fernando Collor um playboy inconsequente. Achava de mau gosto as camisas de punhos dobrados do, como dizia, "filho do Arnon". O único Collor que admirava era o caçula, Pedro. "Fez um ótimo trabalho como administrador da emissora da Globo em Alagoas", dizia.
Passou a se encontrar com Collor. E mudou de opinião: achou-o dinâmico, preparado e em condições de vencer sua nêmesis. Só o apoiou de público em agosto, quando Collor tinha 45% da preferência dos eleitores, contra 11% de Brizola e 9% de Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato do PT.
É um mito da política nacional o de que Roberto Marinho e a Globo "fizeram" Collor. O que ele fez, isto sim, foi mandar que a célebre edição do debate final entre Lula e Collor, levada ao ar pelo "Jornal Nacional", mostrasse claramente que o candidato do PRN saíra-se melhor que o petista. E foram seus subordinados jornalistas que providenciaram uma edição, que, contra as próprias regras da Globo, deu um minuto e 12 segundos a mais de vídeo para Collor.
A edição do debate provocou a única briga séria entre o empresário e seu braço direito na Globo, Boni. Divergiram publicamente, nos jornais, o que nunca houve antes nem depois. Na semana seguinte, a relação deles voltaria a ser de amigos e companheiros.
 
Conheci Roberto Marinho como responsável pela cobertura televisiva de "Veja", em 1984. No princípio, ele me dava notícias em "off". Depois, me passou notícias exclusivas. Em 1989, um grande furo: uma reportagem de quatro páginas sobre a sua separação de Ruth Albuquerque e seu romance com Lily de Carvalho.
Passei a frequentá-los. Não passava semana sem falarmos ao telefone nem mês sem que nos encontrássemos. Quando fui nomeado diretor de "Veja", fez um jantar em minha homenagem.
Em julho de 1992, "Veja" publicava reportagens semanais sobre a corrupção no governo Collor. Roberto Marinho dizia que era um erro, que Collor era "um pouco estróina", mas, no fim das contas, um bom presidente.
No dia 11, "Veja" chegou às bancas com uma capa com uma fotomontagem do rosto do presidente do Banco do Brasil com chapéu de couro e a manchete: "O cangaceiro do Planalto".
Roberto Marinho telefonou assim que leu a reportagem. Seu tom era severo. "Você passou das medidas", disse. "Neste país, não se briga com o presidente do Banco do Brasil". Disse-me que eu colocava em risco minha carreira e o patrimônio de Roberto Civita, o dono da revista. Disse-lhe que a intenção era dar um chega-pra-lá nas pressões que o governo fazia sobre a revista e a editora Abril.
"Mas há maneiras e maneiras de fazer isso. Precisava colocar aquele chapéu?" O seu receio era de que Collor, se continuasse no poder (o que Roberto Marinho desejava e se esforçava para conseguir), se vingasse materialmente de "Veja", da Abril e de mim.
Nem ele me convenceu nem eu consegui demovê-lo. Sua última frase, antes das despedidas, foi a seguinte: "Se você tiver algum problema, fale comigo". Só um amigo diz uma coisa dessas.
 
Toda amizade tem arestas. Roberto Marinho nunca se queixou de nenhuma reportagem da revista criticando programas da Rede Globo. Era sempre elogioso. Na verdade, ele reclamou uma vez. Era uma reportagem de capa que atacava a Globo por estar lançando uma loteria chamada Papatudo, iniciativa do empresário Artur Falk que Roberto Marinho encampou com entusiasmo.
Ele me convidou para almoçar. "Jamais esperava isso de você", disse. "Você acha que eu quero fazer essa loteria porque preciso de mais dinheiro? O que eu quero é fazer. É ver as coisas crescerem".
Dei minhas explicações. Ele rebateu uma por uma. Reconheceu que o tema era jornalístico e polêmico. Despedimo-nos afavelmente. Nunca mais falamos do assunto.
 
A frase "o que quero é fazer" lhe é definidora. Define todo grande empresário. Construir, plantar, frutificar e colher, ver a matéria e a engrenagem humana substituírem o nada era a mola que lançou Roberto Marinho num extraordinário número de empreitadas.
 
Uma vez, me levou para visitar o Projac, a cidade-estúdio da Globo em Jacarepaguá. Tinha dúvidas pertinazes, mas primárias para um empresário de televisão, que sanava com humildade:
- "Boni, quanto custou essa câmera?", perguntou.
- "Cento e vinte e cinco mil dólares, doutor Roberto."
- "E quantas você comprou?"
- "Doze, doutor Roberto."
- "Não dava para comprar só seis?"
- "Não, porque..."
- "Deixa para lá, Boni", atalhou o empresário.
Na saída, me disse: "Não entendo nada de televisão, mas não espalhe".
 
"Sou um jornalista, um jornalista de redação, de banca", respondeu-me nas vezes em que pedi que se definisse. Sua formação foi na redação de "O Globo". Lia e copidescava matérias, fazia títulos, escrevia editoriais, inventava pautas, cobrava, contratava, demitia, decidia manchetes de primeira página. "Nunca quis ser outra coisa na vida."
 
Roberto Marinho não falava do Brasil. Não tinha uma concepção de país pronta na cabeça. Tinha opiniões. E idéias. Algumas surpreendentes. Como a de que faltavam guerras na história do Brasil. "As guerras forjam a nacionalidade, unem o povo. Veja a França, veja os Estados Unidos. Todos os países desenvolvidos passaram por guerras sangrentas."
 
Roberto Marinho não era de confidências. Sempre tornava públicas as suas preferências, se não em palavras, em atitudes e gestos.
A mulher de sua vida? "Lily", respondia antes de terminar a pergunta. Simplesmente ignorava as duas ex-esposas e as dezenas de namoradas. Não falava com elas.
O homem de que mais gosta? "O João", respondeu ao longo de quase duas décadas, referindo-se ao filho João Roberto.
Não era fã de crianças. Fazia brincadeirinhas curtas com os netos e tinha um carinho especial pelo primeiro neto, filho de Roberto Irineu. Gostava de adultos. De conversar com os homens. E de admirar e amar as mulheres.
 
Não tinha medo da morte. Era um ateu convicto. "Não acredito em nada: morreu, acabou", dizia. O que não o impedia de se aproximar e cortejar cardeais, sobretudo os do Rio, de Hélder Câmara a Eugênio Salles. Para fazer política.
Também não temia o julgamento da história. Sim, apoiara a ditadura de Getúlio e a dos militares. E nunca se arrependeu. Não era um democrata. Nem um defensor de regimes autoritários ou totalitários. Adaptava-se às circunstâncias políticas. "Sou um realista."
Claro que defendia a iniciativa privada. Era o ar que respirava. Mas desconfio de que se daria bem numa monarquia absolutista ou no stalinismo.
Desde que pudesse fazer.


Mario Sergio Conti é correspondente da Rádio e TV Bandeirantes em Paris e do site nomínimo.com e autor de "Notícias do Planalto" (Companhia das Letras)


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