São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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AS RAZÕES

Pesquisador dos EUA diz que grupo no poder nada fez para consertar os estragos da guerra

Taleban não tem política para reduzir a tragédia

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Além da seca e das condições climáticas desfavoráveis, a fome no Afeganistão se deve à destruição, durante 22 anos de guerra, de toda uma rede de infra-estrutura de irrigação e de transportes. O Taleban, há cinco anos no poder, não tem nenhum esboço de políticas públicas capazes de consertar o que foi destruído.
É o diagnóstico de Thomas Gouttierre, 61, diretor do Centro Afeganistão da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, e um dos mais citados acadêmicos norte-americanos em questões contemporâneas da Ásia Central.
Em entrevista à Folha, ele diz que a guerra tem um lado positivo: a situação nutricional é mais grave do que em 1971, quando teriam morrido cerca de 10 mil afegãos de fome, mas por causa do conflito o país deve receber mais recursos externos.

Folha - Qual fator atira mais rapidamente o Afeganistão num quadro de desnutrição crônica: o Taleban ou os bombardeios?
Thomas Gouttierre -
O risco de que muitos morram de fome naquele país tem causas complexas. Há o quarto ano consecutivo de seca, que diminuiu as colheitas de cereais, há agora o inverno que inviabiliza o tráfego dos comboios, e há também o Taleban, que não demonstrou preocupação com o problema da fome, não tendo montado nenhuma estrutura oficial que pudesse permitir o auxílio às populações mais atingidas.

Folha - E a guerra?
Gouttierre -
Os bombardeios obviamente atrapalham o funcionamento de qualquer rede de assistência existente. Mas lembremos que já havia guerra no Afeganistão bem antes dos bombardeios agora liderados pelos norte-americanos. Há, assim, a exacerbação de um dado preexistente.
Mas, ao mesmo tempo, o caso afegão ganhou notoriedade, e com isso também cresce -embora em níveis ainda insuficientes- o volume de alimentos que é doado. É preciso direcionar o auxílio aos campos de refugiados, dentro e fora do Afeganistão.

Folha - O fato de o Taleban ter expulsado organizações humanitárias não dificulta essa tarefa?
Gouttierre -
Com certeza. Eram entidades credenciadas pelas Nações Unidas e tinham um objetivo filantrópico muito preciso.

Folha - Não há um paradoxo no fato de o Taleban ter erradicado os campos de cultivo de papoula para a produção do ópio, e esses mesmos campos não estarem produzindo mais comida?
Gouttierre -
Há a crença de que o cultivo da papoula ocorresse no Afeganistão como fator de ajuste do mercado de alimentos, servindo-se de terras que, se reservadas a cereais, criariam um superávit na produção. Mas esses campos agora estão sem cultura nenhuma. É difícil avaliar.

Folha - Quais são os pontos de mais fácil avaliação?
Gouttierre -
Um primeiro exemplo: quando a história do Afeganistão registra tragédias graves como a fome, ao lado da quebra na produção de alimentos há as deficiências de infra-estrutura. O Taleban nada fez para reconstruir a malha viária ou canais de irrigação nas áreas sob seu controle. O Taleban não tem políticas públicas. O pouco que tem sido feito no país é custeado com dinheiro de entidades estrangeiras.

Folha - A queda do Taleban seria então a solução?
Gouttierre -
Alguns acreditam que o atual governo tenha a vantagem de conhecer os agentes da ONU e abrir o caminho para o êxito das tarefas humanitárias.

Folha - O sr. tem informações sobre quantos morreram de fome no Afeganistão em 1971?
Gouttierre -
A informação que tenho é de que foram mais de 10 mil.

Folha - A seu ver há risco de ultrapassar agora essa cifra?
Gouttierre -
A situação é agora mais grave, mas, ao mesmo tempo, a atenção que o Afeganistão desperta em todo o mundo é bem maior. Os Estados Unidos, a União Européia e a ONU tendem a destinar mais recursos. Esse é o lado positivo da guerra.

Folha - Qual a relação entre bombas e desnutrição?
Gouttierre -
As pessoas não estão morrendo por causa das bombas. Os afegãos estão "votando com os pés", abandonando as regiões em que viviam e nas quais não encontravam comida suficiente. Eles estão emigrando na direção das fontes de distribuição de alimentos, dos campos de refugiados em que atuam as mesmas entidades de segurança alimentar que o Taleban obrigou a deixar o país. Repito que, a longo prazo, o engajamento norte-americano servirá para trazer vantagens substanciais ao Afeganistão.

Folha - Qual a sua impressão sobre o Afeganistão de hoje?
Gouttierre -
É um país que conheço bem. Estive por lá pela última vez em 1999. Fiquei chocado. Cabul é uma cidade sem auto-estima. As casas não são mais pintadas, os vidros quebrados não são mais substituídos. As pessoas demonstram terem perdido o sabor de viver.


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