São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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ESTRATÉGIA

País enfrenta miríade de variáveis envolvidas no processo deflagrado pelo conflito na região

Ásia pode virar atoleiro para EUA

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

Os EUA, com seu ataque retaliatório a alvos no Afeganistão e envolvimento mais profundo na Ásia Central, estão correndo o risco de entrar em um atoleiro estratégico ainda mais complexo do que o enfrentado no Vietnã.
A explicação para isso, que cruza opiniões de diversos especialistas na região ouvidos pela Folha, é a miríade de nuances e atores regionais envolvidos no processo -contra um bem mais simples, ainda que potencialmente apocalíptico, embate entre as superpotências durante a Guerra Fria.
No centro do tabuleiro, Afeganistão e seus vizinhos -as ex-repúblicas soviéticas. Entrando no jogo, os EUA. Já em campo, forças tradicionais na região, como Rússia, Irã e Turquia. Por fim, o perigoso elemento Índia-Paquistão.
Em 1992, à luz da dissolução da União Soviética, os EUA passaram a rever suas prioridades estratégicas. A Guerra do Golfo (1991) mostrou que o fornecimento do petróleo ao mundo ocidental podia, sim, ser ameaçado.
Um batalhão de especialistas, políticos e executivos de empresas de petróleo passou a fazer lobby em favor de um maior investimento na região da Ásia Central -o novo Eldorado, a fonte de energia não-renovável alternativa à instável região do Golfo.
A política virou cânone e gerou iniciativas de EUA e União Européia para a região -o que, segundo analistas, é uma reedição do Grande Jogo, a disputa estratégica entre a Rússia czarista e o Império Britânico pela supremacia na região durante o século 19.
A disputa daquela época incluiu lances militares, como guerras onde hoje é o Afeganistão, mas de forma geral envolveu mais espionagem comercial e política.
Como em todo cânone, apareceram mitos associados ao novo Grande Jogo. Primeiro, o potencial energético da região. Em 1997, os EUA proclamavam haver mais de 200 bilhões de barris de petróleo na bacia do mar Cáspio, um terço das reservas conhecidas do Oriente Médio.
Segundo os especialistas Amy Jaffe (Rice University) e Robert Manning (Conselho de Relações Exteriores, Washington), as reservas são significativas, mas só há provas de algo entre 15 bilhões e 30 bilhões de barris, ou menos de 3% total mundial.
Mesmo que as reservas cheguem a 140 bilhões de barris, argumentam, elas são de difícil acesso e de transporte caríssimo.
O segundo mito diz respeito a uma equação que não deu certo. Washington acreditou que seu envolvimento fosse estimular o florescimento de democracias pró-EUA na região -onde seria seguro passar seus dutos. Há de tudo na Ásia Central, menos democracia e regimes estáveis.
A ironia é que os americanos fizeram vista grossa para a consolidação do poder do seu atual alvo, o Taleban, na década de 90 -afinal de contas, era um regime com promessa de estabilidade.
Para armar o ataque, os EUA se voltaram para a potência regional Paquistão e para a principal ex-república soviética da área, o Uzbequistão. No primeiro caso, os riscos são grandes. Apoiando o regime militar de Pervez Musharraf, os EUA equilibraram a disputa de Islamabad com a Índia sobre a Caxemira -que já levou o país a duas guerras e quase a uma terceira em 1999, quando ambos já possuíam armas nucleares.
Há o risco de que os indianos se sintam ameaçados, fortalecendo os laços com a Rússia e reforçando sua posição militar. O perigo de um confronto dispensa comentários.
No front interno, Musharaff parece ter evitado o risco imediato de um golpe fundamentalista. Mas terá de fazer eleições em 2002, conforme mandou a Justiça. Se falhar, os EUA verão seu novo aliado em situação vulnerável e, pior, com bombas atômicas podendo cair em mãos de "primos" do Taleban.
O caso uzbeque também é complicado. Segundo a imprensa moscovita, o presidente Islam Karimov cobrou US$ 8 milhões para deixar os EUA usarem a base de Termez. Mas não se trata de uma negociata simples. Os Uzbequistão vêm tentando há anos se distanciar dos antigos chefes de Moscou. Só que a insurreição muçulmana radical em seu território quase matou Karimov em atentados, e ele recorreu à Rússia.
""As nações centro-asiáticas sabem que é a Rússia, e não os EUA ou a Otan, que podem ajudar efetivamente contra forças radicais islâmicas internas ou externas", diz Sergey Golunov, do Centro de Estudos Regionais da Universidade de Volgogrado (Rússia).
A boa vontade de Moscou, até agora, é total. Há tropas americanas também no Tadjiquistão, onde 25 mil soldados russos estão estacionados. ""A ajuda indireta russa também estreita a cooperação com o Ocidente e enfraquece a crítica às ações na Tchetchênia", afirma Golunov.
Mas o feitiço pode voltar-se contra o feiticeiro. Para Dannreuther, ""a presença física dos EUA pode alimentar sentimentos antiamericanos" entre os muçulmanos uzbeques. Uma eventual revolta islâmica no Uzbequistão fomentaria algo semelhante no Tadjiquistão, e o caminho para a confusão estaria aberto.
O Cazaquistão, por ora, está livre de pressões islâmicas. Ainda é muito dependente de Moscou, e dificilmente irá se alinhar totalmente aos EUA.
Há a questão iraniana. O país, de maioria xiita, é contra o fundamentalismo sunita do Taleban. Logo, joga um xadrez dissimulado de apoio não-declarado à ação do arquiinimigo, os EUA. ""O Irã ainda não jogou as cartas que tem na região, e essa ambiguidade pode ser prejudicial no futuro", analisa o iraniano Nader Entessar, professor de ciência política do Spring Hill College (EUA).
Já a Turquia, que tem estreitos laços com o Turcomenistão e minorias de língua turca em toda a região, também lançou ofertas à Ásia Central nos anos 90. Único membro de maioria islâmica da Otan, já ofereceu tropas para eventuais operações antiterror.
Com tantas variáveis e riscos, os EUA terão de descobrir meios de não se meter em confusão com jogadas geopolíticas de ocasião.



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