Nem toda
criança espancada vai para a marginalidade, mas quase todos
os marginais passaram pela violência
Uma equipe de pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal
de São Paulo) está investigando o comportamento
de 800 famílias da periferia de São Paulo -e
se deparando com as Isabellas clandestinas, vítimas
da violência doméstica que, por causa de sua
condição social e da impunidade, não
se transformam em notícia.
Apesar das informações ainda serem preliminares,
os pesquisadores encontraram 20% de crianças vítimas
de espancamentos, asfixia, pontapés ou queimaduras,
resultando em lesões ou fraturas. Os dados apenas confirmam
um projeto piloto realizado em 2006 por aquela universidade
com 90 crianças da periferia, quando foram encontrados
resultados semelhantes.
É a primeira pesquisa já realizada sobre violência
doméstica dentro das casas -os dados disponíveis
até agora são baseados nos casos que chegam
aos hospitais ou às repartições públicas.
"O caso Isabella Nardoni é um exemplo extremo
desse tipo de agressão", afirma a professora Cristiane
Silvestre de Paula, do programa de pós-graduação
da Unifesp, que faz parte da equipe de pesquisadores. "Ouço
mães dizerem que não estão agredindo,
mas educando. Uma delas comentou que queimou o filho com ferro
quente para que ele aprendesse a não tirar dinheiro
de sua carteira."
A Unifesp está aprofundando números já
divulgados pelo Lacri (Laboratório de Estudos da Criança),
da USP, baseados nas mais diferentes fontes, como hospitais,
conselhos tutelares e juizados: de 1996 a 2007, foram registrados,
no país, 49.481 casos de violência grave cometida
por familiares contra as crianças em suas casas. Nesse
período, contabilizaram-se 532 mortes.
Aquela entidade da USP admite que apenas uma pequena parcela
dos casos é denunciada. O assunto, na maioria das vezes,
morre no silêncio cúmplice. Daí a importância
do estudo da Unifesp, feito de casa em casa, no qual se revela,
com mais precisão, o tamanho da epidemia da violência
familiar.
Está aqui um dos ovos de serpente da selvageria brasileira:
os agressores do futuro são os agredidos do passado,
gerando-se um círculo vicioso. Acompanho o assunto
da delinqüência infanto-juvenil desde o final da
década de 1980. Nunca (vou repetir, nunca) conheci
uma criança agressora que não contasse histórias
sobre ter sido vítima de espancamentos dentro de casa.
Nem toda criança espancada vai para a marginalidade,
mas quase todos os marginais passaram pela violência
ou, no mínimo, foram vítimas dos casos graves
de negligência -o que é entendido também
como violência.
Neste mês, foi publicado um estudo do Instituto de
Psiquiatria de Londres que mostra uma combinação
perversa para as vítimas de maus-tratos na infância.
A vítima tende a se tornar agressor quando, além
do trauma psicológico, sofre de uma falha genética
-baixa produção de uma determinada enzima que
ajuda a regular a quantidade de serotonina, molécula
que influi no controle da agressão.
Se, como mostra a pesquisa da Unifesp, a barbárie
ocorre em 20% dos lares, especialmente da periferia, podemos
estimar o tamanho da vulnerabilidade brasileira. No caso dos
pobres, a negligência de casa vai se reproduzindo em
todos os ambientes, a começar da escola, ganhando dimensão
especialmente em comunidades em que a marginalidade é
exaltada.
A resultante óbvia desses dados é que um plano
de segurança tem necessariamente de envolver programas
de educação da família, com visitas de
assistentes sociais às casas, além de ampliação
da rede de creches, sobretudo nas periferias. Esse tipo de
ação mostra resultados animadores, como se registra
no programa modelo de primeira infância no Rio Grande
do Sul, no qual uma assistente social é responsável
por 25 famílias. É uma alternativa mais barata
às creches.
Ampliar o olhar para essas questões é a mais
importante contribuição do caso Isabella, ao
provocar, como nunca se viu, um debate sobre violência
doméstica -isso, pelo menos temporariamente, deixou
que o assunto não ficasse adormecido.
PS - Para Cristiane Silvestre de Paula, o risco é
maior nas casas comandadas por mães solteiras pobres
-o que só reforça a visão dos que estabelecem
uma relação entre ausência de planejamento
familiar e violência. Mulheres sozinhas, com poucos
recursos, cercadas de muitos filhos, tendem a ter mais estresse
e a descontá-lo nos filhos. Essa é uma das razões
por que, em cidades norte-americanas em que o aborto é
mais facilitado, a taxa de criminalidade caiu mais intensamente.
Coloquei neste link
o relatório do projeto-piloto da Unifesp sobre violência
doméstica.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria
Cotidiano.
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