Perfil
das vítimas, revelado em relatório das Nações
Unidas sobre violência contra crianças, é
tema de debate na Folha
Segundo dados de 2000, 16 crianças
e adolescentes foram assassinados por dia. Desses mortos,
14 tinham entre 15 e 18 anos
Em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no
Brasil, sete são negros. A raça também
representa 70% na estimativa de 800 mil crianças brasileiras
sem registro civil. Entre os indicadores negativos, os negros
só perdem para a população indígena
na taxa de mortalidade infantil.
Os números, contidos no relatório "Estudo
das Nações Unidas sobre a Violência contra
Crianças", encomendado pela ONU (Organização
das Unidas), mostram que o perfil das vítimas da violência
vai muito além da faixa etária.
"A violência não tem só idade. Tem
cor, raça, território. As vítimas são
os negros, os pobres, os moradores de favelas", afirmou
a psicóloga Cenise Monte Vicente, coordenadora do Escritório
do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância)
em São Paulo.
A declaração foi feita na última quarta-feira,
durante debate sobre a situação da violência
contra crianças no Brasil e no mundo, promovido pela
Folha e pelo Unicef e com a mediação do jornalista
Gilberto Dimenstein, colunista e membro do Conselho Editorial
da Folha.
Nesse dia, o relatório, feito pelo professor e pesquisador
Paulo Sérgio Pinheiro, foi apresentado na Assembléia
Geral das Nações Unidas. Pinheiro foi convidado
como especialista independente pelo secretário-geral
da ONU, Kofi Annan.
O documento cita relatórios de 132 governos e consultas
a organizações não-governamentais. A
realidade brasileira é descrita por dados como os do
SIM/DataSus (Sistema de Informações sobre Mortalidade
do Ministério da Saúde). Segundo estatísticas
de 2000, 16 crianças e adolescentes foram assassinados
por dia, em média. Desses mortos, 14 tinham entre 15
e 18 anos. Nessa faixa etária, 70% eram negros.
"Se somarmos as 14 mortes por dia, é mais de um
Boeing a cada duas semanas, sendo a maioria formada por negros",
afirmou Cenise, referindo-se à tragédia com
o vôo 1907 da Gol, que vitimou 154 pessoas. "É
importante investigar as causas da tragédia do Boeing.
Mas em relação a essas mortes [de jovens e negros],
a gente não tem a mesma atitude e vigilância.
Alguma coisa está errada."
Segundo Cenise, o alerta também vale para a situação
da criança indígena no Brasil. O relatório
cita que a média de óbitos entre crianças
até um ano de idade é de 47 por mil nascidos
vivos. A média nacional foi de 26 óbitos em
2004.
As preocupações com os aspectos raciais e étnicos
da violência estarão no plano de colaboração
do Unicef com os países onde atua, elaborado a cada
cinco anos. "Vamos fazer um corte [separação]
racial e étnico e sensibilizar os gestores públicos
e as ONGs para tornar esse padrão inaceitável",
disse.
Nada cordial
Para o advogado Oscar Vilhena Vieira, diretor-executivo da
ONG Conectas Direitos Humanos e professor da Escola de Direito
da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que
também participou do debate, as estatísticas
de homicídio desmentem a visão do Brasil como
um país cordial. "O Brasil não tem nada
de país cordial. É um país profundamente
violento, especialmente com jovens, negros e moradores das
periferias."
Essa violência, segundo o advogado, está presente
na sociedade e no Estado. "Parece até que se treina
tiro tendo o jovem como alvo, tanto do lado dos bandidos como
o das instituições de Estado", disse.
Vieira afirma que a legislação brasileira -entre
elas, a Constituição Federal e o Estatuto da
Criança e do Adolescente- avançou nos últimos
anos, mas não impediu que a sociedade e o Estado continuassem
"absolutamente negligentes".
Para exemplificar, Vieira citou um outro dado contido no relatório.
O documento reproduz levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), de 2004, que estima que existam
80 mil meninos e meninas em abrigos -87% deles tinham família
e somente 5% eram órfãos. "Essas crianças
estão sendo objeto de absoluta negligência. Não
necessariamente da família, que muitas vezes não
tem capacidade de dar conta dessas crianças, mas do
Estado, que tem obrigação com essa família."
Violência social
Dalka Chaves de Almeida Ferrari, psicóloga com especialização
em enfrentamento da violência doméstica contra
criança e coordenadora do Centro de Referência
às Vítimas da Violência do Instituto Sedes
Sapientiae, foi outra especialista a participar do debate.
Segundo ela, pesquisa realizada pelo centro, com apoio do
Unicef, apontou a "violência social" como
o principal tipo de violência enfrentada nas escolas.
O levantamento foi realizado em 20 municípios brasileiros,
de várias regiões do país.
Os educadores responderam a questionários. O item "violência
social" foi o mais citado, na frente da violência
física, sexual ou doméstica. "A questão
mais presente e mais difícil de os educadores lidarem
é a criança que chega desnutrida, que chega
sem comida, que chega com a roupa rasgada. E isso se repete
em toda as escolas", afirmou.
As informações são
do jornal Folha de S.Paulo.
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