São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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CRÍTICA

Imagens do diretor constroem espetáculos inesgotáveis

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

O cinema , entre tantas coisas que o formam, é feito de clichês, e entre eles existe aquele afirmando ser o cineasta Jacques Tati "o Charles Chaplin francês".
Como todo lugar-comum, a afirmação contém um pouco de verdade e um grande desvio, um lamentável erro de cálculo. Onde Chaplin é triste e sentimental, Tati é -de modo quase esquizofrênico- feliz.
Sua felicidade nasce de um pecado original: o dos anos 40, do século 20, que transformaram a Europa em um território de desastre absoluto.
Quando Jacques Tatischeff se torna Jacques Tati, e em 1948 dirige (e, peça essencial em seu esquema, atua) "Jour de Fête", está pronto para se debruçar sobre o que mais o fascina: o mundo reinventado do pós-guerra.
"Jour de Fête" é um dos filmes ausentes no ciclo dedicado a Tati promovido pelo Museu de Arte Moderna, mas há seus passos seguintes: das "Férias do Sr. Hulot" (1953) ao quase surrealista "As Aventuras de M. Hulot no Tráfego Louco", de 1971, em um total de quatro longas e três curtas.

Desajustado
Em cada uma de suas obras há um susto e um divertimento, de um homem e de uma nação. Antes, um país, a França, imaginava estar vivendo um idílio camponês para despertar -com o fim da Segunda Guerra- em um novo sistema: o do consumo e das invenções tecnológicas que se tornaram essenciais ao cotidiano da humanidade.
Tati segue esse mesmo percurso, é seu representante privilegiado, e se mostra um desajustado, uma pessoa, em uma palavra, "inadequada".
Esse império do "novo" impõe desafios sem fim, e são dessas situações que Tati (com um especial tempo e domínio do espaço, que nele é todo um programa) extrai os risos, as gargalhadas, suas comédias aventureiras e a rejeição ao sentimentalismo.
Há em seus filmes, claro, um segredo, e o crítico francês Serge Daney talvez tenha sido, em seu texto "Elogio de Tati", aquele que chegou mais próximo dele.
Serge Daney mostra estar Tati seguindo a direção contrária, porque em suas comédias, tudo, em última análise, funciona, e essa idéia é a mais perturbadora em seu cinema.
Isso porque todo comediante, em princípio, é um aliado natural do desastre, pois cada acontecimento fora de ordem, o caos que surge onde deveria existir a regra, é o motivo mais fácil (e infantil, no sentido mais positivo da palavra) para que o riso irrompa.
Mas Tati é fascinado pelo fato de que as coisas continuam a acontecer dentro de uma determinada rotina e, com o tempo, de forma aperfeiçoada. Esse é o acontecimento mais ridículo, o melhor espaço para o jogo imposto ao espectador.
Jacques Tati é um artista do burlesco, e suas "gags", cuidadosamente planejadas, pertencem à história do cinema e à paisagem emocional de todos aqueles que estiveram em contato com as imagens criadas por ele. Imagens -mais uma vez, como escreve Daney- "de uma surpresa infinita, um espetáculo inesgotável".


Avaliação:    


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