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MOSTRA DE DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA
Subjetividade, paródia e polêmica dominam novo ciclo
SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Sonho de Núpcias", de
Otavio Frias Filho, abre a
quarta semana da mostra de dramaturgia com projeções da subjetividade. Com vários textos encenados, como "Don Juan", "Típico
Romântico" e "Rancor", o dramaturgo retoma aqui a influência
de Harold Pinter, visível nas outras peças, para relativizá-la com
recursos de humor negro e estereótipos de literatura policial, sem
deixar de evocar, em eco longínquo, os fluxos de consciência de
Alaíde em "Vestido de Noiva", de
Nelson Rodrigues.
As camadas de tempo e espaço
que o texto sobrepõe num mecanismo regressivo, feito da repetição de versões de uma mesma cena de estupro, são inseridas na
noite de núpcias de Salete -Débora Duboc- e Reinaldo -Élcio
Nogueira Seixas-, quando a irrupção da violência arbitrária, típica de Pinter, inviabiliza temporariamente o clichê dos noivos
apaixonados num quarto de hotel
na praia.
A precária consistência da realidade, as falhas de comunicação e
a indecisão de tom, entre sério e
risível, são transportadas pelo relato da personagem feminina, capaz de reconstituir experiências
que nunca viveu, ao menos no
plano naturalista que o texto, ao
mesmo tempo, confirma e esvazia, como Pinter em "No Man's
Land" e "Old Times".
Os vestígios do passado no presente sobrevivem na materialização desses fantasmas pessoais,
que a recordação mais banal atualiza, lembrando, nesse aspecto,
certas cenas de Sam Shepard, semelhantes também no contexto
provisório, como é o caso do
quarto de hotel.
Contrariando o movimento de
instabilidades, o final conclusivo
da peça soa artificial, pois retém
as variações dessa dramaturgia de
espasmos, que o diretor Maurício
Paroni de Castro soube captar
quando usou tapadeiras móveis
para marcar as passagens de cena,
além de sublinhar o feitio cinematográfico do roteiro.
Os atores, especialmente Débora Duboc e Renato Borghi -como Moraes, o detetive de hotel-,
optam decididamente por uma linha de comicidade, que enfraquece a trama ambígua.
A intervenção incisiva do diretor reaparece na concepção cênica de William Pereira para "O Regulamento", de Samir Yazbek. As
falas telegráficas do roteiro frágil,
entre farsesco e absurdo, facilitaram a opção de Pereira por uma
espécie de farsa pós-moderna,
com direito a todos os clichês da
encenação dos anos 80, incluindo
gelo seco e telas maquinadas.
Nessa leitura paródica, a personagem Deus (Élcio Nogueira Seixas) se assemelha a um chefe mafioso que imita a dança de Chaplin com o globo terrestre em "O
Grande Ditador", numa síntese
de sentido reforçada pelas "tábuas" do regulamento divino.
Renato Borghi, o suicida que se
recusa a viver depois da morte,
contracena com Luah Guimarãez,
a sensual secretária de Deus, valorizando o texto com expressões e
gestos antológicos, dignos da melhor estirpe de comediantes brasileiros.
Último texto da noite, "Dentro", de Newton Moreno, continua a inquieta dramaturgia gay de
"Deus Sabia de Tudo e Não Fez
Nada". A peça explora a complexidade de relacionamentos e práticas homoeróticas na narrativa
polêmica de um "fist-fucking",
aproximando-se de Jean Genet
em "Nossa Senhora das Flores",
na combinação de primitivo e
simbólico e na mistura de carne e
alma que resultam numa síntese
poética do comportamento marginal e da vida de riscos.
Nilton Bicudo escolhe o caminho da simplicidade na montagem, mas derrapa no início, para
enfrentar o texto incômodo apenas no final, quando permite que
os atores Renato Borghi e Élcio
Nogueira Seixas sustentem o espectro turbulento da relação, numa auto-exposição corajosa e comovedora.
Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP
"Sonho de Núpcias", "O
Regulamento" e "Dentro"
Quando: última apresentação, hoje, às
19h
Onde: Teatro Popular do Sesi (av.
Paulista, 1.313, tel. 3284-3639)
Quanto: entrada franca
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