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JANIO DE FREITAS
O maior dos direitos
O mais consagrado dos direitos
vigentes no Brasil independe do
regime, se ditadura ou a chamada democracia. Também está
acima da Constituição, dispensando-a de registrá-lo entre os
demais direitos, tão menores. Seletivo na determinação de quem
o usufrui e generalizante nos efeitos sobre os que não o possuem, é
o grande, o imbatível e brasileiríssimo direito ao abuso.
A semana pareceu uma concentração de aplicações desse direito maior. Não, sua aplicação é
cotidiana e incessante, com a
mesma facilidade atravessa as
semanas e os anos. Houve, sim,
acúmulo de exposições que costumam ser esparsas -quando não
beneficiadas pelo mais freqüente
silêncio-, e concentrá-las proporciona um exercício didático e
simples.
Na semana pródiga, os dirigentes do Banco Central mostraram
não se satisfazer só com o direito
e o poder, concedidos por Lula, de
governar o governo. É lógico, então, que o presidente do BC, Henrique Meirelles, considere desprezível a revelação da "IstoÉ" de
que, para a Receita Federal,
constasse como residente nos Estados Unidos entre 1996 e 2002, e
à Justiça Eleitoral afirmasse, para formalizar sua candidatura a
deputado federal, ter domicílio
eleitoral em Goiás nos anos de
2001 e 2002.
As leis eleitorais são feitas pelos
políticos com o cuidado principal
de deixar-lhes todas as brechas
possíveis. Mesmo, porém, que
Henrique Meirelles seja favorecido por brechas da legislação, não
conta com brecha na ética e na
moralidade pública para acobertar a contradição de suas afirmações. Seu alegado domicílio eleitoral sem domicílio real, só para
candidatar-se, não deixa de ser,
na prática, o que de direito é falsidade ideológica.
A prática pegou também, na
mesma ocasião, outro dirigente
do BC, Luiz Augusto Candiota,
que deixou o cargo sob a acusação de remessas e contas no exterior inconfessadas à Receita Federal. É abuso muito comum no
pessoal do sistema financeiro,
privado ou público. Tão comum
que, de abuso, até passa a norma.
Menos comum, por falta de mais
oportunidades, é "a coincidência" que fez com que o autor de
um boletim do banco CSFB Garantia antecipasse as pressões para a saída de Candiota e, depois,
fosse o nomeado para a vaga que
antecipara. Rodrigo Azevedo já
entrou no BC abusando da adivinhação e da coincidência. O homem certo no lugar certo.
Dezesseis de uma vez. Rima, e
poderia ser uma solução. Quatro
ex-presidentes e 14 ex-diretores
do BNDES foram agora acusados, em ação do Ministério Público Federal, de improbidade administrativa no desenrolar da
privatização da Eletropaulo. A
cobrança, como indenização ou
restituição, de R$ 41 milhões a
Luiz Carlos Mendonça de Barros,
Pio Borges, Andrea Calabi e
Francisco Gros é, claro, muito pequena para assustar esses bem-sucedidos freqüentadores de cargos públicos. Mas a iniciativa dos
procuradores José Roberto Oliveira, Suzana Fairbanks Lima e
Luciana Pinto tem o mérito de
documentar o quanto o governo
Fernando Henrique, com suas
privatizações, abusou do direito
de abusar.
Como o direito de abuso não
depende dos montantes envolvidos, não fazem má figura os R$
70 mil dados pelo Banco do Brasil por bilhetes para um show de
arrecadação financeira do PT.
Existe a explicação, que livra a
face dos petistas dirigentes do BB,
Henrique Pizzolato e Ivan Guimarães, de que a casa de show
propôs ao banco a compra dos 70
ingressos sem informar a finalidade petista do evento. Se houvesse uma pequena investigação,
conviria apurarem quem recomendou à moça que mandasse
uma proposta formal ao BB, para decisão de dirigentes petistas, e
não a outros bancos. O direito de
abuso inclui o direito a variadas
formas, mesmo que uma cartinha, de encobrimento e proteção.
É o que se passa com a imoralidade que são as abusivas relações
entre poder público e os abusados
planos e seguros de saúde. Desde
o seu surgimento aqui, são um
dos grandes escândalos de abuso
que nunca chegam a ser suficientemente escandalosos. Crias da
atividade genial que são os bancos, planos e seguros de saúde inventaram outra modalidade de
exploração nas duas pontas: exploram os associados na cobrança exorbitante e exploram os
prestadores de serviços médicos
com tabelas que não são de pagamento, são de humilhação. Diante de aumentos que beiram os
100%, o governo Lula, outro especialista em governar com medidas provisórias, apenas recorre
à Justiça. Ou seja, transfere a decisão do governo ao Judiciário,
para não se contrapor ao direito
de abusar.
O conflito de Telecom Itália e
Brasil Telecom inclui abusos de
todos os gêneros para os lados. O
noticiário esbanjou envolvimentos de grampos telefônicos, furto
de e-mails, um espião à portuguesa, a investigadora Kroll Associates, participação do ministro Luiz Gushiken em favor de
um dos lados, a ligação do conflitante Luiz Roberto Demarco com
arrecadação financeira para o
PT de Gushiken, os poderosos
empresários Daniel Dantas (um
expoente na capacidade de fazer
inimigos) e Carla Cicco indicados
como contratantes de serviços
criminosos - enfim, uma enciclopédia do direito ao abuso, que
traz implícito, não esqueçamos, o
direito à impunidade.
Uma semana merecedora mesmo, ao seu final, da informação
de que o chefe da Advocacia Geral da União, Álvaro Ribeiro da
Costa, está demissionário. Não
quer dar os pareceres favoráveis
cobrados pela Presidência para
medidas que, legalmente incabíveis, são ditadas pelo direito de
abuso, o maior dos direitos vigentes no Brasil.
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