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"Petista é referência para argentinos"
DE BUENOS AIRES
O presidente eleito Luiz Inácio
Lula da Silva é hoje a principal referência externa que têm argentinos, avalia o advogado argentino
Alberto Etcheberry, criador e diretor do Instituto de Estudos Brasileiros na Argentina.
Ele diz que, depois de "dez anos
iludidos pela conversibilidade",
os argentinos procuram por novas referências externas e que o
Brasil substituirá os EUA como o
país de maior influência na Argentina.
O advogado avalia que, no campo econômico, o Brasil poderá fazer pouco pela Argentina em
2003.
Pelo contrário, os argentinos
poderiam ajudar o Brasil, já que o
país produz alimentos que seriam
necessários para a implementação do programa Fome Zero.
Etcheberry foi embaixador e secretário de Assuntos Latino-americanos do governo Raúl Alfonsín
(1983-1989) e participou das primeiras discussões sobre a formação do Mercosul. Leia a seguir os
principais trechos da entrevista
que ele concedeu à Folha na quinta-feira passada:
Folha - A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva foi recebida com entusiasmo na Argentina, e muitos argentinos dizem admirar Lula e
acreditar que seu governo pode
ajudar a Argentina. Por que essa
confiança?
Alberto Etcheberry - Existem
muitas razões para essa admiração e esperança dos argentinos.
Antes de tudo é preciso entender
que a vitória de Lula foi recebida
na Argentina como uma bomba
atômica. Os argentinos descobriram que viveram dez anos na loucura da conversibilidade e agora
estão buscando novas referências.
Uma das referências que os argentinos estão abandonando era
uma certa concepção que havia
sobre a relação do país com os
EUA, o FMI, os países do primeiro mundo.
O discurso de Menem [Carlos
Menem, presidente argentino de
1989 a 1999" era de que éramos
um país de primeiro mundo. Lula
representa para os argentinos o
que não se conseguiu fazer com a
conversibilidade e com Menem:
uma mudança de verdade, um
candidato de verdade. Na Argentina, a maioria das pessoas não
tem candidato, não tem preferência. Nesse cenário, surge, para os
argentinos, alguém como Lula no
Brasil. Assim como os norte-americanos tiveram uma influência
forte no governo Menem, se espera agora que Lula tenha uma influência muito forte sobre o próximo governo.
Folha - Muitos argentinos parecem considerar o Mercosul e a retomada do crescimento no Brasil como soluções para parte dos problemas econômicos do país. Não é um
exagero, considerando que antes
Lula terá que lidar primeiro com os
problemas brasileiros?
Etcheberry - A economia argentina hoje, de imediato, não precisa
do crescimento brasileiro. Temos
combustível para crescer dois ou
três anos, reconstruindo o que foi
destruído pela crise. A desvalorização do peso dará combustível
para este crescimento. Primeiro,
as exportações estão reanimando
uma parte importante dos setores
agrícolas. O que não tem apenas
efeitos nestes setores, já que há
efeitos em cadeia. Os produtores,
por exemplo, começaram a comprar máquinas e equipamentos.
Isso numa economia que estava
quase como um deserto. E há a
substituição de importações. Outra coisa: a pesificação das dívidas
deu fôlego aos devedores. Assim,
a economia argentina tem combustível para crescer por dois ou
três anos. Não precisa do Brasil
agora.
Folha - Quando precisará?
Etcheberry - A Argentina precisa
do Brasil estrategicamente. Precisamos, por exemplo, construir
um Mercosul diferente. Um Mercosul que não se restrinja apenas
ao comércio, porque o comércio
não é um grande problema para a
Argentina. O principal problema
estratégico é uma mudança no
perfil produtivo dos dois países. E
há grandes oportunidades deste
ponto de vista. Um exemplo é a
integração logística. No Nordeste
brasileiro, por exemplo, chega
pouco leite porque o transporte
terrestre brasileiro é muito caro.
Esta seria uma oportunidade para
os produtores argentinos. Mas
para isso é preciso planejamento
conjunto. Há produtores brasileiros na mesma situação.
O mercado apenas, por meio do
livre-comércio, não resolve o problema. Então, a ascensão de um
governo no Brasil que não tem
preconceitos sobre a atuação estatal e que não pensa que o mercado
vai consertar tudo é muito positiva para a Argentina.
Folha - Para construir este Mercosul é preciso muita afinidade política. Quem seriam os interlocutores
de Lula?
Etcheberry - No fundo você está
me perguntando sobre as eleições. Se chegar a haver eleições
aqui, só uma coisa está clara. Pela
primeira vez vai haver uma eleição muito polarizada -um quadro eleitoral muito parecido com
o brasileiro de 1989.
Há uma coisa segura: Menem
não vai ganhar em nenhuma hipótese. Mas qualquer que seja o
presidente da Argentina, o que terá que fazer é uma espécie de continuidade do que se está fazendo
agora. É uma questão objetiva. O
que fazer? Há um plano econômico de fato, não planejado, cujo eixo é a desvalorização do peso. A
Argentina então vai pensar estrategicamente. O país tem muito a
oferecer a Lula.
Se o plano Fome Zero realmente
for prioridade, por exemplo, a Argentina pode oferecer alimentos;
dois casos são o arroz e o feijão,
produtos cujas safras no Brasil tiveram problemas. Assim, o plano
Fome Zero já é a primeira oportunidade de integrar a produção regional. E, claro, para a Argentina,
é fundamental a parceria com o
Brasil para negociar com outros
mercados.
Folha - É comum ouvir os argentinos lamentando a não existência
de um "Lula" argentino...
Etcheberry - A crise política argentina é brutal. Na realidade, a
admiração por Lula deixa transparecer uma atitude muito argentina: a dificuldade para encarar
processos de construção passo a
passo. Para os argentinos é difícil
entender o processo de construção do PT. É difícil explicar que
demorou mais de 20 anos e quatro eleições presidenciais para que
Lula chegasse à Presidência.
Quando Lula veio aqui pela primeira vez, logo depois de perder
as eleições de 1998, perguntavam-me porque eu estava trazendo um
"morto político" à Argentina.
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