São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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"Petista é referência para argentinos"

DE BUENOS AIRES

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva é hoje a principal referência externa que têm argentinos, avalia o advogado argentino Alberto Etcheberry, criador e diretor do Instituto de Estudos Brasileiros na Argentina.
Ele diz que, depois de "dez anos iludidos pela conversibilidade", os argentinos procuram por novas referências externas e que o Brasil substituirá os EUA como o país de maior influência na Argentina.
O advogado avalia que, no campo econômico, o Brasil poderá fazer pouco pela Argentina em 2003.
Pelo contrário, os argentinos poderiam ajudar o Brasil, já que o país produz alimentos que seriam necessários para a implementação do programa Fome Zero.
Etcheberry foi embaixador e secretário de Assuntos Latino-americanos do governo Raúl Alfonsín (1983-1989) e participou das primeiras discussões sobre a formação do Mercosul. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Folha na quinta-feira passada:
 

Folha - A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva foi recebida com entusiasmo na Argentina, e muitos argentinos dizem admirar Lula e acreditar que seu governo pode ajudar a Argentina. Por que essa confiança?
Alberto Etcheberry -
Existem muitas razões para essa admiração e esperança dos argentinos. Antes de tudo é preciso entender que a vitória de Lula foi recebida na Argentina como uma bomba atômica. Os argentinos descobriram que viveram dez anos na loucura da conversibilidade e agora estão buscando novas referências. Uma das referências que os argentinos estão abandonando era uma certa concepção que havia sobre a relação do país com os EUA, o FMI, os países do primeiro mundo.
O discurso de Menem [Carlos Menem, presidente argentino de 1989 a 1999" era de que éramos um país de primeiro mundo. Lula representa para os argentinos o que não se conseguiu fazer com a conversibilidade e com Menem: uma mudança de verdade, um candidato de verdade. Na Argentina, a maioria das pessoas não tem candidato, não tem preferência. Nesse cenário, surge, para os argentinos, alguém como Lula no Brasil. Assim como os norte-americanos tiveram uma influência forte no governo Menem, se espera agora que Lula tenha uma influência muito forte sobre o próximo governo.

Folha - Muitos argentinos parecem considerar o Mercosul e a retomada do crescimento no Brasil como soluções para parte dos problemas econômicos do país. Não é um exagero, considerando que antes Lula terá que lidar primeiro com os problemas brasileiros?
Etcheberry -
A economia argentina hoje, de imediato, não precisa do crescimento brasileiro. Temos combustível para crescer dois ou três anos, reconstruindo o que foi destruído pela crise. A desvalorização do peso dará combustível para este crescimento. Primeiro, as exportações estão reanimando uma parte importante dos setores agrícolas. O que não tem apenas efeitos nestes setores, já que há efeitos em cadeia. Os produtores, por exemplo, começaram a comprar máquinas e equipamentos. Isso numa economia que estava quase como um deserto. E há a substituição de importações. Outra coisa: a pesificação das dívidas deu fôlego aos devedores. Assim, a economia argentina tem combustível para crescer por dois ou três anos. Não precisa do Brasil agora.

Folha - Quando precisará?
Etcheberry -
A Argentina precisa do Brasil estrategicamente. Precisamos, por exemplo, construir um Mercosul diferente. Um Mercosul que não se restrinja apenas ao comércio, porque o comércio não é um grande problema para a Argentina. O principal problema estratégico é uma mudança no perfil produtivo dos dois países. E há grandes oportunidades deste ponto de vista. Um exemplo é a integração logística. No Nordeste brasileiro, por exemplo, chega pouco leite porque o transporte terrestre brasileiro é muito caro. Esta seria uma oportunidade para os produtores argentinos. Mas para isso é preciso planejamento conjunto. Há produtores brasileiros na mesma situação.
O mercado apenas, por meio do livre-comércio, não resolve o problema. Então, a ascensão de um governo no Brasil que não tem preconceitos sobre a atuação estatal e que não pensa que o mercado vai consertar tudo é muito positiva para a Argentina.

Folha - Para construir este Mercosul é preciso muita afinidade política. Quem seriam os interlocutores de Lula?
Etcheberry -
No fundo você está me perguntando sobre as eleições. Se chegar a haver eleições aqui, só uma coisa está clara. Pela primeira vez vai haver uma eleição muito polarizada -um quadro eleitoral muito parecido com o brasileiro de 1989.
Há uma coisa segura: Menem não vai ganhar em nenhuma hipótese. Mas qualquer que seja o presidente da Argentina, o que terá que fazer é uma espécie de continuidade do que se está fazendo agora. É uma questão objetiva. O que fazer? Há um plano econômico de fato, não planejado, cujo eixo é a desvalorização do peso. A Argentina então vai pensar estrategicamente. O país tem muito a oferecer a Lula.
Se o plano Fome Zero realmente for prioridade, por exemplo, a Argentina pode oferecer alimentos; dois casos são o arroz e o feijão, produtos cujas safras no Brasil tiveram problemas. Assim, o plano Fome Zero já é a primeira oportunidade de integrar a produção regional. E, claro, para a Argentina, é fundamental a parceria com o Brasil para negociar com outros mercados.

Folha - É comum ouvir os argentinos lamentando a não existência de um "Lula" argentino...
Etcheberry -
A crise política argentina é brutal. Na realidade, a admiração por Lula deixa transparecer uma atitude muito argentina: a dificuldade para encarar processos de construção passo a passo. Para os argentinos é difícil entender o processo de construção do PT. É difícil explicar que demorou mais de 20 anos e quatro eleições presidenciais para que Lula chegasse à Presidência. Quando Lula veio aqui pela primeira vez, logo depois de perder as eleições de 1998, perguntavam-me porque eu estava trazendo um "morto político" à Argentina.



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