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BRASIL CAMARADA
AGF Brasil Seguros, após protelar pagamento por meio de recursos, pediu e obteve anulação de débito
Fazenda cancela dívida de R$ 46,4 milhões
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A empresa AGF Brasil Seguros
brigou na Justiça de 1992 a 2002
para tentar se livrar de uma dívida
de R$ 46,4 milhões. Esgotada a via
judicial, contornou o problema
do modo mais improvável: o credor, com quem guerreava havia
uma década, desistiu de receber.
O nome dele é governo federal.
Partiu da AGF o pedido de cancelamento da dívida. Alegou que
o prazo legal para a cobrança havia expirado. A seguradora, uma
das seis maiores do país, foi atendida em 16 de julho de 2003, já sob
Luiz Inácio Lula da Silva.
O passivo tributário da AGF foi
anulado por meio de um despacho do próprio ministro da Fazenda. É de 16 de julho de 2003.
Como o titular Antonio Palocci
Filho estava em viagem, o documento foi firmado pelo interino
Bernard Appy. Secretário-executivo da pasta da Fazenda, Appy é
braço direito de Palocci. Seu despacho anotou: "Reconhece-se, no
presente processo, a ocorrência
de prescrição do crédito tributário". Mandou que fosse "cancelado", por "nulo que é".
Em documento confidencial de
19 de setembro de 2003, a Controladoria Geral da União, órgão de
auditoria vinculado à Presidência
da República, condenou o gesto
da Fazenda. Disse que o "contribuinte [AGF] entrou, inúmeras
vezes, com mandados de segurança protelatórios". Por essa razão, não deveria ter prosperado a
tese da prescrição, que, nos casos
de contenciosos tributários, ocorre após cinco anos.
"Apenas referendei um parecer
da Procuradoria da Fazenda Nacional", disse Bernard Appy à Folha. "Tenho que confiar na Procuradoria. É o órgão que faz a análise jurídica das decisões no âmbito
do ministério."
Governo versus governo
De fato, a decisão baseou-se em
parecer da Procuradoria. Leva o
número 877/2003. Foi escrito em
7 de janeiro de 2003, uma semana
depois da posse de Lula. Transitou pelas mesas de três procuradores fazendários. Até que, em 26
de maio de 2003, subiu ao gabinete ministerial com o "aprovo" do
procurador-geral Manoel Felipe
Rêgo Brandão.
"A redação do texto é de inteira
responsabilidade da Procuradoria da Fazenda Nacional", aquiesceu Rêgo Brandão. "O reconhecimento da prescrição, previsto em
lei, não é um direito, mas um dever do procurador. Não podemos
atirar a União numa ação suicida,
sob pena de arcarmos com custos
judiciais, que podem chegar a
10% ou 20% do valor da causa."
O pedido da empresa de seguros teve origem em São Paulo.
Num primeiro parecer, o escritório local da Procuradoria da Fazenda se posicionou contra o cancelamento da dívida. O assunto
chegou a Brasília, segundo o procurador-geral Rêgo Brandão,
porque remanesciam dúvidas.
Dúvidas que a Controladoria
Geral da União parece não enxergar. Como que convencidos da
impropriedade da decisão favorável à companhia de seguros, os
auditores sugerem em seu relatório que o processo seja remetido
ao Ministério Público Federal, para que se manifeste sobre a decisão da Fazenda e, "se for o caso,
abra inquérito para a apuração e
imputação de responsabilidades
cíveis e penais".
Até o momento, o relatório da
Controladoria da União não chegou ao conhecimento do Ministério Público. Além do episódio envolvendo a AGF Brasil Seguros, o
documento levanta dúvidas em
outras direções. Foram noticiadas
pela Folha domingo passado. Envolvem de parcelamentos supostamente irregulares de dívidas fiscais a violações no cadastro eletrônico que armazena os dados da
dívida ativa da União.
Oito auditorias
O secretário-executivo Appy e o
procurador-geral Rêgo Brandão
receberam a reportagem da Folha
juntos, na noite de quarta-feira.
Disseram que não conheciam o
relatório da Controladoria da
União, redigido há mais de quatro
meses. O repórter mostrou-lhes
uma cópia.
Appy e Rêgo Brandão acharam
absurdo que o documento houvesse "vazado" antes de chegar-lhes às mãos. O procurador-geral
da Fazenda disse: "Não reconheço nos auditores autoridade para
fazer considerações jurídicas".
Foi o próprio Rêgo Brandão
quem solicitou à Controladoria
da União que auditasse oito escritórios da Procuradoria da Fazenda: Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraná e
Bahia.
O caso que envolve a AGF Brasil
Seguros está mencionado num
texto que expõe, em 42 páginas,
os resultados da inspeção feita na
capital paulista. Rêgo Brandão
disse que só recebeu um outro documento, com um resumo das oito inspeções. Não há entre os papéis, segundo ele, o detalhamento
do caso de São Paulo.
"Admito que possa haver extravios. Mas jamais me esqueceria de
um documento em que meu nome é mencionado em tais circunstâncias. Definitivamente,
não vi esse relatório."
"É comum, é corriqueiro"
Em pesquisa realizada nas últimas duas semanas, a Folha tentou
localizar outras decisões em que,
como no caso da AGF, um ministro da Fazenda houvesse chancelado o cancelamento de débitos
tributários supostamente caducos por prescrição. Nada foi encontrado.
No encontro com Appy e Rêgo
Brandão, o repórter perguntou se
havia precedentes. E o procurador-geral: "Isso é comum, é corriqueiro, está previsto em lei". Instado a mencionar casos semelhantes, disse: "Eu precisaria fazer
um levantamento".
Dali a 48 horas, Rêgo Brandão
enviou ao repórter, via fax, uma
folha de papel. Enumera outros
quatro casos de prescrição. São
dívidas diferentes, mas de um
mesmo devedor: Chalé Materiais
de Construção. Todas canceladas
em 20 de fevereiro de 2003. Não
há referência nem a valores nem à
interferência do ministro da Fazenda.
Por que a decisão teve de ser
submetida ao gabinete do ministro? "A competência para o reconhecimento de prescrição é do
procurador", afirmou Rêgo Brandão. "Mas há casos que constituem uma oportunidade para pacificar o entendimento. Daí o encaminhamento ao ministro. Todos os procuradores agora sabem
que são obrigados a admitir a
prescrição nos casos em que ela é
clara", declarou.
O parecer da Procuradoria da
Fazenda Nacional que trata da
AGF Brasil Seguros não informa o
valor em jogo na causa. "Não sabia que a dívida era de R$ 46,4 milhões", reconheceu Bernard
Appy. Não se interessou em perguntar? "O volume de papéis que
somos obrigados a assinar diariamente é grande", disse.
"Providências céleres"
Pela lei, o reconhecimento da tese da prescrição de débitos tributários obriga o gestor público a
apurar responsabilidades. No caso específico da AGF Seguros, é
imperioso saber por que o governo demorou a cobrar um tributo
cuja exigibilidade fora reconhecida da primeira à última instância
do Judiciário.
"Pode ter havido crime ou mera
interpretação equivocada de algum servidor", disse Appy. O parecer da Procuradoria da Fazenda
e o despacho do ministro interino
determinaram a devolução do
processo a São Paulo, "para apuração das responsabilidades, se
for o caso". Nenhuma sindicância
foi instaurada.
"Recomendei que fossem adotadas providências para um encaminhamento mais célere", disse
Rêgo Brandão. "O processo será
enviado à Receita, para abertura
de sindicância. Pode-se criticar a
demora. A decisão foi tomada há
mais de três meses [na verdade,
há mais de seis meses] e não houve providência. Não deveria ser
normal. Mas a falta de estrutura
da administração pública faz com
que coisas assim aconteçam."
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