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JANIO DE FREITAS
Duas carências
Um dos dois maiores obstáculos para o plano de inovações do futuro governo é bem conhecido, o que não chega a torná-lo menos espinhoso. O outro,
porém, apenas mostrou uma
ponta de dedo que não sugere,
nem de longe, a dimensão e a
força do monstro.
No primeiro caso estão os interesses que puderam levar sua
voracidade ao absurdo, com a
liberalidade e o estímulo da política neoliberal, mas não poderiam continuar prevalecendo
contra os interesses gerais. O outro dos dois problemas maiores
explica-se melhor por duas situações dos últimos dias.
O futuro entra em cena com o
projeto Fome Zero. O nome é suficientemente claro no alvo, FOME, e na meta, ZERO, ambos a
serem alcançados com a distribuição de cupons de alimentação.
Cupons? Pronto, desandaram
as objeções. Logo uma integrante da PUC-SP, Rosa Maria Marques, "uma das maiores especialistas em políticas de proteção
social do país", segundo a jornalista Gabriela Athias, ergueu seu
argumento contra os cupons e
em favor de dinheiro: "é complicado proibir uma família pobre
consumir iogurte, chocolate e
outras guloseimas infantis apresentadas na TV". Sedução publicitária pela TV em casa onde
há fome? Vá lá, com o aparelho
provavelmente entre o freezer e
o microondas. Ao que foi acrescentado o comentário, não ficou
claro se da especialista ou da
jornalista, de que o cupom "reduz a autonomia das famílias
que poderiam decidir economizar, em determinado mês, para
investir em outros bens de consumo". Seria mesmo interessante o hábito de fazer uma poupançazinha, onde o desespero é
matar a FOME antes que a FOME mate.
A discussão entre os partidários de dinheiro e os do cupom
tornou-se mais relevante do que
o projeto de zerar a FOME
-um projeto básico de proporcionar o que é mais essencial à
vida e, no entanto, falta a entre
6 e 10 milhões de famílias, ou entre 22 milhões e 40 milhões de
pessoas.
Tudo isso? Fernando Henrique Cardoso discordou logo:
"Começa que não são 40 milhões, porque 90% das crianças
estão na escola e têm a merenda
escolar". Então está resolvido:
esquecidos os idosos da miséria,
os que não estão na escola, os
adultos em geral dos cafundós
da miséria e se a merenda for
dada como nutrição diária suficiente para as crianças, está tudo resolvido. Embora se fique
sem entender por que o governo
Fernando Henrique Cardoso
gastou dinheiro com o seu Bolsa-Alimentação e com a publicidade em torno disso.
É óbvio que o número depende dos critérios de aferição. A
pesquisa domiciliar emitida em
setembro pelo IBGE, instituição
oficial, indica que 6,6 milhões de
famílias têm ganho total inferior a um salário mínimo (a média seria de R$ 137) e, assim,
não podem ter a alimentação
minimamente necessária. Estas
famílias somariam cerca de 22
milhões de pessoas, considerando-se a média nacional de 3,4
pessoas por família. Mas a prole
da pobreza é muito mais alto e,
com otimismo, pode-se aceitar 5
pessoas por família, que já totalizariam 33 milhões subalimentados por falta de dinheiro. FOME, em português razoável.
A Organização Mundial de
Saúde considera, em vez do ganho familiar, as calorias ingeridas por dia. O número dos carentes já subirá bem além dos 22
milhões. O Instituto Cidadania
concluiu que a subnutrição
atinge 44 milhões. E o estudo sobre a fome no mundo, que a
ONU está realizando, já afirma,
por seu relator Jean Ziegler, que
a desigualdade social faz com
que o Brasil apresente um dos
piores índices do mundo: um em
cada três brasileiros é desnutrido. Pelo menos 16 milhões de
pessoas ingerem menos de 250
calorias por dia, menos de 10%
do mínimo referido pela Organização Mundial de Saúde. E
este dado esmagador: doenças
provocadas pela FOME matam
pelo menos 280 crianças com
menos de um ano.
E ainda se discute se a comida
deve ser dada por intermédio de
cupons ou em dinheiro, proporcionar a compra de guloseimas
anunciadas ou fazer poupança,
como se não fosse urgente, humanamente indispensável, apenas isso: dar comida para matar
a FOME. Pode haver mil projetos muito mais completos para
atenuar a desigualdade social,
mas depois disso: matar a FOME. E o que importa não é saber
agora o número exato dos necessitados: é começar a dar-lhes
comida para matar a FOME, e
continuar aumentado o número de beneficiados até que a FOME chegue a ZERO.
Para isso, Luiz Inácio Lula da
Silva pensa em um amplo entendimento social. Convida aí
uns cento e tantos para um encontro em que sejam abordadas
algumas preliminares. Então,
daí saem alguns endinheirados
e doutorados com suas observações: "falta agenda para o pacto", a discussão "devia ser mais
profunda" e por aí. Mas o encontro tinha o propósito, bem
explicitado, de encaminhar discussões que levem à criação de
uma agenda, ao tratamento
mais aprofundado do acordo
em seu futuro conselho, e por aí.
Tudo tão estapafúrdio que é
quase cômico, não fosse o caso
de FOME. No mínimo de alimentação e no mínimo de racionalidade, quantas carências.
Pausa
Concordo que deveria ser definitiva, mas ainda será só temporária a ausência desta coluna, nos próximos dias.
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