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CONFLITO AGRÁRIO
Em SP, as cem famílias registradas no balanço do governo Lula foram assentadas pelo governo do Estado
"Lula só matou a fome dele. O governo não deu um real para manter as famílias no campo", diz prefeito
Lula repete FHC e infla números da reforma agrária
FABIO SCHIVARTCHE
DO PAINEL
RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL AO PONTAL DO PARANAPANEMA (SP)
Surpresa, a ex-sem-terra Maria
Bispo do Nascimento, 43, abre
um sorriso. "A TV fala muita coisa. A realidade é bem outra." Seu
marido, Adolfo do Nascimento,
50, que se declara fã do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, também
parece se divertir com a notícia.
"Isso é conversa. O Lula não era
nada na época, não era presidente, como ele podia ter feito esse assentamento?".
Maria e Adolfo vivem desde dezembro de 2001 no projeto de assentamento Repouso, em Mirante do Paranapanema (SP). A terra,
devoluta, foi arrecadada pelo governo de São Paulo, que abriu as
estradas e acabou de instalar a
energia elétrica.
Até 2002, por meio de um convênio, o governo estadual recebia
uma ajuda da União para custear
apenas parte da criação do assentamento, a indenização das eventuais benfeitorias dos fazendeiros
que ocupavam as terras devolutas. O convênio venceu em dezembro, mas o governo Lula ainda não o renovou nem repassou
recursos para indenizações.
O casal Nascimento não recebeu um real do Ministério do Desenvolvimento Agrário ou sequer
uma visita de um técnico do Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Nada disso impediu que o balanço dos seis primeiros meses de
realizações do governo Lula na reforma agrária, divulgado em Brasília em 27 de junho último, incluísse o casal entre as 2.534 famílias supostamente assentadas no
período de janeiro a junho.
O artifício contábil que "assentou" os Nascimento se estende a
dezenas de ex-sem-terra. Em São
Paulo, todas as cem famílias "assentadas" no balanço do governo
Lula na verdade o foram pelo
Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB). O governo federal reconheceu que houve
falha nesse caso.
Levantamento feito pela Folha a
partir do balanço oficial indica
que pelo menos 512 famílias (cerca de 20,3% do total do primeiro
semestre) foram atendidas com
dinheiro e iniciativas dos governos de São Paulo e do Maranhão.
Os "siprados"
O levantamento aponta que o
governo Lula está utilizando estratégia semelhante à adotada pelo governo Fernando Henrique
Cardoso para ter dito que "assentou" mais de 630 mil famílias no
período 1995-2002: contagem dos
assentados atendidos por Estados
e municípios, de áreas sem qualquer infra-estrutura, de "assentados" que ainda não estão nas terras e de pessoas que já vivem há
décadas nos mesmo lugares.
O balanço sobre o Maranhão registra 584 famílias assentadas pelo
governo federal no primeiro semestre de 2003. Mas o próprio Incra maranhense trabalha com outro número, 172.
O procurador e assessor da superintendência do
Incra maranhense,
José Ribamar Reis
Freire, procura ser
didático na explicação: "Eles [Brasília]
estão contando o
pessoal do Estado
aí no meio. Porque
até o governo passado, quando o Incra reconhecia terras do Estado, podia contabilizar como metas do Incra.
Neste ano, como
até hoje não recebemos [orientação] se
pode ou não pode
[ser feito], eu, pelo
menos, não estou
contabilizando".
Freire também
aponta possível
motivo pelo qual o
governo toma para
sua contabilidade
as famílias atendidas pelo Estado: "O
Incra reconhece essas famílias e as joga para o nosso sistema. Como elas
são lançadas no sistema do Incra,
que é o Sipra, elas vão aparecer
como realizadas pelo Incra. Porque para eles [famílias] terem
acesso a crédito na Caixa Econômica, acesso à moradia, eles têm
de estar cadastrados no Incra. Então vão aparecer na contagem da
meta do Incra como número de
famílias realizadas. Mas aqui
[Maranhão] a gente separa o que
é do Estado e o que é do Incra".
O Sipra mencionado por Freire
é o Sistema de Informações de
Projetos de Reforma Agrária. Trata-se de um controle virtual, que
não leva em conta se o beneficiado está ou não na área.
No balanço oficial do governo
Lula, nada é dito sobre famílias
"sipradas", como se chamam, no
jargão dos funcionários do órgão,
aquelas que integram o cadastro
virtual do Incra.
Indagada sobre a informação de
que os assentamentos de São Paulo listados como do governo federal em 2003 foram feitos pelo governo estadual, a Superintendência do Incra de São Paulo enviou
uma nota lacônica: "Os assentamentos Vista Alegre, Repouso,
Guaná-Mirim e Santa Angelina
são do Itesp". Dias depois, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, admitiu falha na contagem de São Paulo.
Fora da área
No Rio Grande do Sul, dois dos
projetos que o governo Lula diz
ter criado só começam a ser possíveis porque houve aporte financeiro do governo gaúcho.
Em Aceguá (RS), o custo da
aquisição de uma área de 409 hectares foi dividido ao meio entre
Estado e União, cabendo a cada
um R$ 171,3 mil. Mas nada disso é
mencionado no balanço federal.
No Estado há indicativo de que
o governo tem contado como "assentamentos" áreas onde, na realidade, nem existem trabalhadores rurais sem terra. "Nada está
definido. Não há definição de que
famílias ocuparão os lotes", informou a assessoria de comunicação
do Incra gaúcho.
"Ainda não houve a renovação
do convênio com o Incra. Não fizemos nenhum assentamento
neste ano", contou o chefe de gabinete do Gabinete de Reforma
Agrária e Cooperativismo do governo estadual, Flávio Santos.
Para justificar essa contagem, o
governo pode se valer da portaria
número 80, baixada em abril de
2002 pelo então ministro do Desenvolvimento Agrário, José
Abrão, três dias depois da primeira reportagem publicada pela Folha sobre a inflação de números
nos balanços da reforma agrária.
Pela portaria, duramente criticada por representantes sindicais
dos funcionários do Incra, terrenos vazios e famílias apenas cadastradas já passam a ser considerados "assentamentos" e "assentadas" da reforma agrária.
Na Bahia, onde os assentamentos de 2003 efetivamente são do
governo federal, há muitas reclamações sobre a falta de infra-estrutura. Em Morpará (170 famílias assentadas neste ano), está havendo um refluxo, com assentados indo embora por falta de condições, segundo o sindicato dos trabalhadores rurais do município. "Até agora, Lula
só matou a fome dele.
O governo não deu
um real para criar
condições de manter
as famílias no campo",
criticou o prefeito, Felisberto Filho (PFL).
No assentamento de
Mirante do Paranapanema (SP), o casal
Nascimento, que se
divertiu ao saber ter
sido "assentado" pelo
governo Lula, vive
realidade diferente.
Após dois anos de dificuldades, hoje conta
com gado e benfeitorias que valeriam cerca de R$ 100 mil. Esse
progresso não se deveu a nenhum apoio
federal, mas a empréstimos pessoais e trabalho. "Votei no Lula e
ainda acredito nele,
mas aqui não teve ajuda dele", diz Adolfo
Nascimento.
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