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ANDAR DE BAIXO
Meio-irmão do presidente eleito trabalha em padaria do Guarujá e ganha R$ 300 por mês
Lulinha serve bebidas na Real Brasil
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
O Lulinha, ali, não tem nada de
paz e amor. Com cara de poucos
amigos, pano de prato nas mãos,
rejeita o repórter impiedosamente: "Esquece, companheiro.
Pode esquecer. Não dou entrevista". Deixa claro que está nervoso. "Não percebe? Jornalista
me põe maluco..."
Tira o boné branco, coça a cabeça e passa pela enésima vez o
pano sobre o balcão da modesta
padaria em Vicente de Carvalho,
distrito do Guarujá (SP). "Dar
entrevista... Não dou. Nem que
implore. O presidente é ele, ó!" E
aponta para a TV ligada.
Terça-feira, dia 10, 13h20. No
telejornal, Luiz Inácio Lula da
Silva, 57, aparece junto de George W. Bush, em Washington. Na
padaria, o copeiro João Inácio da
Silva Neto, 39, irmão do ex-metalúrgico por parte de pai, serve
bebidas, prepara petiscos, frita
um hambúrguer.
Os fregueses, velhos conhecidos, chamam-no de Lulinha.
Atarracado, ligeiro, guarda mesmo muita semelhança física com
o petista. "Ô, Lulinha, vê uma
pinga, da mais ardida, e bote na
conta da Presidência."
Há, porém, ironia maior. O
nome da panificadora: Real Brasil. "Como a moeda e o país", frisa um dos proprietários, Arnaldo Melilo, 62, enquanto toma
uma cerveja. "Quer outra ironia?
A clientela, aqui, ficou pobrezinha. Fraca de bolso, caída. Gente
do Brasil real na Real Brasil..."
Ergue o copo e brinda, melancólico, o trocadilho.
Catarinense, Arnaldo comprou o estabelecimento em março de 1981. Os antigos donos,
portugueses, batizaram a padaria com o nome que, hoje, soa
tão sugestivo. Na época, desejavam apenas homenagear a realeza brasileira.
"Tempos de rei...", prossegue
Arnaldo. "Já vivi, sim, períodos
melhores. Por exemplo: julgava-me de classe média e trocava
sempre de carro -modelos bacanas, de luxo. Pagava à vista ou,
no máximo, em cinco prestações. Agora... Peguei um Golzinho há três anos, para saldar em
24 meses, e não faço idéia de
quando conseguirei outro."
O comerciante lembra que,
"em 1987, 88", somava 11 funcionários e gastava 400 quilos de farinha de trigo por dia. Atualmente, consome 50 quilos e dispõe de seis empregados, ganhando entre R$ 300 e R$ 500.
"Vou fechar 2002 com o pior faturamento desde que assumi o
negócio. Uma queda de 30% em
relação a 2001. Parte de minha
freguesia está sem ocupação e
pensa um bocado na hora de soltar o dinheiro."
Tamanha crise empurrou Arnaldo "para o colo do PT".
"Nunca imaginei que votaria em
candidato do partido. O Lulinha
trabalha com a gente há duas décadas. Virou quase da família.
Nem por isso me animava a
apoiar o irmão dele. Mas a coisa
piorou de um jeito que acabei
entrando na onda da mudança."
Seca
Passa um pouco das 15h, e Lulinha continua irredutível. "Não
abro minha boca." É, talvez, o
mais teimoso dos 13 filhos que o
estivador Aristides Inácio da Silva gerou com a segunda mulher,
Valdomira Ferreira de Góes, a
Mocinha. Lula nasceu do primeiro casamento (com Eurídice
Ferreira de Melo, a dona Lindu).
"Mudança", reitera, do caixa,
Cléia Melilo, 29, outra sócia da
padaria. "Tudo no Brasil precisa
mudar. Os juros, o preço do trigo, o nível de desemprego. Morro de medo que o país se torne
uma Argentina." Põe-se, então, a
elogiar o novo presidente.
"Opa! Falando bem do homem?" -interrompe, gaiato, o
funcionário José de Arimatéia.
"Antes das eleições, tratava o Lula como analfabeto, resmungava
que o barbudo não sabia ler."
Cléia, sem graça, simplesmente
sorri: "Eeeeeeeu?".
Lavando pratos, José -potiguar, 23 anos, dois salários mínimos por mês- diz que sempre
votou no PT. "O partido dos sofredores." Sobre Lula, deposita
esperanças exageradas. "Vai
acabar com a seca. O Nordeste é
um poço de água. Basta ter coragem e furar o solo. Lula terá. Ele
não teme os coronéis."
O desenhista Ataíde Dimas,
62, pernambucano, também
exalta "a bravura do conterrâneo". Cliente da panificadora
desde 1999, costumava votar em
Enéas. "Políticos tradicionais
me desanimam. Espie o FHC.
Prometeu que ia fazer e acontecer, mas não fez pirulito. Quando o Enéas desistiu de concorrer
à Presidência, ponderei: "No Serra, não adianta investir. Chegou
a vez do Lula". Fui gostando da
idéia e decidi lhe confiar meu voto. Não me arrependo."
Agora, aposta tanto "no sangue dos Silva" que pretende
transformar Lulinha em vereador. "Estou tentando convencê-lo. O cabra reúne todas as condições para emplacar: jamais faltou no serviço, jamais maltratou
um freguês."
Quase 17h. O expediente de
Lulinha vai terminar. Ainda assim... "Sem papo, repórter!"
Mostra-se, no entanto, muito
menos contrariado. Provoca a
morena que lhe pede um café:
"Minha princesa, conhece a Folha? Dê uma entrevistinha rápida. Elogie nosso futuro presidente". "O Lula?", indaga a moça. "Se ele me tirar da merda em
que me encontro..."
Jogo do bicho
Na quarta-feira, o gelo finalmente se desfaz. Brincalhão, Lulinha avisa: "Hoje vou falar. Mas
só se me arrumarem um cachê.
Cascalho, para a carne seca, o
bacalhau".
Explica, primeiro, por que anda resistindo à imprensa. "Logo
depois das eleições, sofri uma
perseguição danada. Jesus do
céu! Incomoda, assusta. Sem
contar o risco de publicarem bobagem. Não quero atrapalhar
meu irmão, compreende?"
Solteiro, mora em Vicente de
Carvalho, onde nasceu. Divide a
casa própria, de três cômodos,
com a mãe. Nos fundos do terreno, há outro casebre, do sobrinho. A família não possui carro
nem telefone. "Ou melhor, tem a
minha BMW." Uma "valente bicicleta, o transporte preferido do
brasileiro".
Escola, Lulinha mal frequentou. Completou o primário e
ponto. Já trabalhou de empacotador em supermercado, de engraxe e na construção civil. Como copeiro da padaria, recebe
R$ 300 por mês -"grana de virar a cabeça, hein?"
Viu Lula de perto somente
uma vez, em 1978, quando Aristides morreu. "Vivia numa favela e estava jogando bola, todo sujo de areia. Lula apareceu em um
Chevette. "Quem é o João?", perguntou. "Eu", respondi. E ele:
"Sou teu irmão, pô! Soube da
morte do pai"."
Nunca mais conversaram.
"Não importa. Mesmo à distância, o admiro. Fico torcendo para que acerte."
Há 25 dias, Lulinha ingressou
no PT. "Assinei a ficha de filiação. Não entendo nada de política, mas gostaria de contribuir,
participar das reuniões." Candidatar-se, como sugere Ataíde?
"Não, por enquanto não."
De repente, se levanta. "Chega
de interrogatório! Foi um prazer." Antes de partir, confessa:
"Ontem à tarde, anotei a placa
do carro de reportagem
-4977." Planejava jogar no bicho. "De bobeira, recuei." Se tivesse apostado... "Deu 6977."
Ganharia na centena.
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