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LAVOURA ARCAICA
Pesquisa em relatórios do governo revela que prática avança para grandes empreendimentos
Agronegócios e pecuária de ponta usam trabalho escravo
ELVIRA LOBATO
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA E AO PARÁ
Levantamento exclusivo da Folha com base em 237 relatórios de
fiscalizações do Ministério do
Trabalho realizadas entre janeiro
de 2000 e dezembro de 2003 revela que o trabalho escravo no Brasil
acompanha o avanço das fronteiras agrícolas e da pecuária e está
presente em grandes empreendimentos agrícolas para a exportação e em modernas fazendas de
criação de gado que estão no topo
da vanguarda tecnológica.
É a face obscura de parcela do
agronegócio, uma cicatriz escondida em meio à riqueza.
Para conhecer a realidade do
trabalho análogo a escravo no
Brasil, a reportagem da Folha,
primeiro, mergulhou nos processos do grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho
-considerando só os processos
com "resgate" de trabalhadores.
Em seguida, visitou os municípios de Marabá, Xinguara, Curionópolis e Redenção, no sul do Pará, considerada uma área endêmica de trabalho escravo.
De 1995 até o início deste mês de
julho, foram resgatados 11.969
trabalhadores rurais que se encontravam em condição análoga
à de escravo. Quase metade
(5.224) dos casos ocorreu no Pará,
seguido por Mato Grosso (2.435)
e Bahia (1.139). Depois, vêm Maranhão, Tocantins e Rondônia.
Avulsos
Trata-se de uma mão-de-obra
avulsa, usada em serviços temporários e sobre a qual os fazendeiros consideram não ter responsabilidade trabalhista, uma vez que
ela é contratada por intermediários especializados, os ""gatos".
Segundo a secretária de Inspeção do Ministério do Trabalho,
Ruth Vilela, o fazendeiro trata de
forma distinta seu trabalhador fixo e o avulso. O primeiro tem carteira assinada, comida farta e bom
alojamento. O outro não tem carteira, é preso ao gato por um sistema de servidão por dívida, não
pode abandonar a fazenda antes
de terminar a empreitada e trabalha em condições desumanas.
Há casos de resgate em fazendas
com pistas de pouso para aviões
de médio porte e sedes suntuosas,
mas que alojavam os trabalhadores temporários nos currais ou em
barracas de plástico, sem paredes,
escondidas na mata. Segundo Vilela, os proprietários alegam desconhecer o que se passava em
suas propriedades e atribuem a
responsabilidade aos gerentes.
Vanguarda
Modernas fazendas de criação
de gado estão sendo punidas no
Pará, Rondônia e Tocantins. A família Mutran -de pecuaristas e
exportadores de castanha do Pará- teve duas fazendas na região
de Marabá (PA) autuadas.
Evandro Mutran nega a acusação e afirma que a fazenda Peruano (com 16.500 cabeças de gado) é
modelo em seleção genética das
raças guzerá, nelore e girolanda.
Ele se diz alvo de perseguição.
Os municípios de Sorriso (MT),
maior produtor de soja do Brasil,
e de São Desidério (BA), maior
produtor de grãos do Nordeste,
estão na rota oficial do trabalho
escravo, juntamente com outros
celeiros prósperos da produção
de grãos, como Campo Novo dos
Parecis, Tapurah e Nova Mutum,
no Mato Grosso, e Barreiras e Luiz
Eduardo Magalhães, na Bahia.
O prefeito de Sorriso, José Domingos Fraga Filho (PMDB), fala,
com orgulho, da cidade de 52 mil
habitantes, criada há 18 anos, que
já responde por 18% da produção
de grãos de Mato Grosso. ""Quase
não se usa mão-de-obra bruta
braçal aqui, é tudo tecnologia de
ponta." Só de soja, foram plantados 590 mil hectares neste ano.
Três dos maiores produtores de
soja da região -Darcy Ferrarin,
Valdir Daroit e Nei Frâncio- foram autuados no ano passado. O
secretário-geral do Sindicato Rural de Sorriso, Rubens Denardi,
discorda da autuação e diz que
elas maculam o município que,
afirma, tem uma agricultura entre
as mais avançadas do mundo.
No mês passado, foram autuadas duas fazendas de soja (Java e
Tucano) em Campo Novo dos Parecis (MT), segundo maior produtor do grão no Brasil. Uma outra fazenda de soja, a Floresta, foi
autuada no município vizinho de
Brasnorte. No total, foram resgatados 80 trabalhadores.
O presidente do Sindicato Rural
de Campo Novo dos Parecis, Hélio José Brizola, que representa os
fazendeiros, afirma que a contratação de trabalhadores avulsos,
por intermédio de gatos, sempre
existiu na região, mas só agora está sendo fiscalizada e punida.
São Desidério, na Bahia, não fica atrás em termos de pujança
agrícola. O município prevê colher, neste ano, 620 mil toneladas
de soja, 193,7 mil toneladas de algodão e 280,7 mil toneladas de
milho, café, arroz e frutas.
Foi lá que ocorreu, no ano passado, a maior operação de ""libertação" de trabalhadores em condição análoga à escrava já realizada: 745 pessoas retiradas da fazenda Roda Velha, que, segundo
o processo de fiscalização, pertence a Ernesto Dias Filho e à Caribbean Participações, que não foram localizados pela reportagem.
Moacir Hoop, presidente do
Sindicato Rural de Luiz Eduardo
Magalhães, que representa também os fazendeiros de São Desidério, acha que o Ministério do
Trabalho exagera o problema.
"Há casos de trabalhadores sem
documentos. Com pena de vê-los
desempregados, os proprietários
contratam sem carteira assinada.
Mas daí a ser trabalho escravo salta uma grande distância", diz.
No ano passado, foram retirados 1.043 trabalhadores de três fazendas no Oeste baiano. Um caso
teve repercussão pelo contraste
entre a situação dos trabalhadores
e o poder econômico do proprietário: o da fazenda Tabuleiro, de
Constantino de Oliveira, pai do
fundador da empresa aérea Gol.
A fazenda, de 20 mil hectares,
era preparada para o plantio de
soja, arroz e algodão quando houve a autuação. Os trabalhadores
faziam a limpeza da terra, catando
tocos e raízes. Segundo o relatório
da fiscalização, 300 trabalhadores
tiveram suas carteiras assinadas
após a fiscalização, mas 259 decidiram, ainda assim, deixar a propriedade. Eles haviam sido recrutados na Bahia, em Goiás, no Tocantins e até no Distrito Federal.
Quando o caso veio à tona, o
empresário divulgou nota reconhecendo o problema e anunciando que iria vender sua participação. "[...] O projeto da fazenda,
que tanto me entusiasmou, estará
sempre maculado por este triste
episódio", declarou, à época.
Grupo Belga
A multinacional belga Sipef foi
autuada sob a acusação de utilizar
trabalho escravo na fazenda Senor, em Dom Eliseu (PA). Em outubro de 2002, o Ministério do
Trabalho retirou da propriedade
153 trabalhadores, provenientes
do Maranhão e do Piauí e usados
na colheita da pimenta do reino.
O representante da empresa no
Brasil, Joost Christian Brands
Smit, afirma que a multinacional
agiu errado ao não assinar as carteiras dos safristas, mas não considera ter havido exploração de
trabalho escravo. Ele negou também que houvesse crianças trabalhando na propriedade, conforme
diz o relatório da fiscalização.
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