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OS ARES DO MUNDO
Celso, o intelectual do outro Brasil
RUBENS RICUPERO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando morreu Bobbio, "La
Stampa", o jornal de sua cidade,
Turim, encimou sua primeira página com a manchete "Morre
Bobbio, o intelectual da outra Itália". Havia no título três sentidos
transparentemente ocultos. Bobbio era "o", não "um" intelectual
dentre outros; sua Itália era "outra", não só porque deixara de
existir, passando a ser história,
mas porque era melhor que essa
que está aí.
Sob o choque de que perdemos
Celso Furtado, imediatamente
lembrei-me desse exemplo. Do
mesmo modo que Bobbio em relação à frustrada esperança de vida política melhor para a Itália,
Celso representou para nós, brasileiros, "a" consciência moral e intelectual de um "outro" Brasil,
que acreditava na "fantasia organizada" de construir, com autonomia, um desenvolvimento autêntico e justo. Sua morte põe
simbolicamente fim aos 60 anos
mais marcantes da história do
Brasil desde a Segunda Guerra
-não por acaso, ele foi um dos
últimos pracinhas da FEB ainda
ativos na vida pública.
Desse período, ele encarnou o
melhor. Identificou-se com os governos Vargas, Kubitschek, Goulart, no que tiveram de mais nobre: o desenvolvimento como responsabilidade central do Estado,
o planejamento como método racional para imprimir sentido e
coerência ao trabalho dos milhões
de atores anônimos da economia,
a redução e a eliminação das disparidades regionais e sociais como condição de garantia de oportunidades iguais para a auto-realização de todos os brasileiros.
Nordestino de Pombal, no árido
sertão paraibano, Celso se autodefinia pela paisagem natal -"eu
sou como um cacto"-, mas era,
na realidade, um homem de coração afetuoso e tocado pela poesia
debaixo da áspera casca externa
do sertanejo. Era também o mais
universal, o mais "globalizado" e
traduzido dos brasileiros.
Nenhum outro deu contribuição comparável à "desconstrução" do subdesenvolvimento, de
início no Brasil, depois na América Latina e no mundo, como fenômeno histórico e estrutural de
complexidade irredutível à caricatura simplificadora do neoliberalismo triunfante.
Primeiro na Cepal com Prebisch, mais tarde na Universidade
de Paris como professor, construiu uma das obras intelectuais
mais ricas e sutis no domínio do
desenvolvimento. Bem antes da
escola institucionalista, a ele deve-se muito da valorização original
da cultura como essência do processo de desenvolvimento.
Em junho, quisemos homenageá-lo na inauguração da Unctad
(Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) em São Paulo, na presença de Lula e Kofi Annan. Devido à
saúde, Celso não pôde ir, mas enviou-nos algumas linhas que, segundo me disse ao telefone, eram
sua (última) mensagem ao povo
brasileiro, a condensação, no
mais alto grau de pureza e essencialidade, de tudo em que creu.
Afirmava que "a dimensão política do processo de desenvolvimento é incontornável" e que "o
avanço social dos países que lideram esse processo não foi fruto de
uma evolução automática e inercial, mas de pressões políticas da
população". São essas, lembrou,
"que definem o perfil de uma sociedade, e não o valor mercantil
da soma de bens e serviços por ela
consumidos ou acumulados".
"O verdadeiro desenvolvimento
-não o "crescimento econômico"
que resulta da mera modernização das elites- só pode existir ali
onde houver um projeto social
subjacente." E conclui: "É só
quando prevalecem as forças que
lutam pela efetiva melhoria das
condições de vida da população
que o crescimento se transforma
em desenvolvimento."
Se não quisermos que a história
brasileira se converta em fantasia
para sempre desfeita, construção
definitivamente interrompida, temos de escutar a lição que nos
deixa ao partir esse grande brasileiro, amigo querido, mestre incomparável, que não poderemos
nunca mais, em seu pequeno e
acolhedor apartamento parisiense, escutar, ao lado de Rosa, a
quem abraçamos, Marisa e eu,
com afeto comovido e inconsolável.
Rubens Ricupero foi secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e
ministro da Fazenda (governo Itamar
Franco).
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