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SOMBRA NO PLANALTO
Promotor especialista em combate a jogos de azar vê interferência entre Poderes; Espanha é modelo em jogo legalizado
"Bingos não podem ser fechados por MP"
RICARDO BRANDT
DA REDAÇÃO
As cerca de 1.100 casas de bingo
que hoje funcionam por decisão
liminar da Justiça no Brasil não
poderão ser fechadas por meio de
uma medida provisória do Executivo. É o que afirma o promotor
do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) Rodrigo Canellas Dias,
40, membro da Comissão Nacional de Combate às Casas de Bingo
e especialista da Procuradoria de
Justiça de São Paulo no combate
aos jogos de azar. Dias se diz contrário à regularização dos bingos
no país devido a possibilidade de
uso do jogo para lavagem de dinheiro do crime organizado. Em
entrevista concedida à Folha por
telefone anteontem, o promotor
explicou como o bingo pode ser
usado para lavagem de dinheiro,
apontou a Espanha como exemplo de país com jogo legalizado e
criticou a falta de fiscalização.
Folha - Qual a eficiência jurídica
dessa medida provisória em relação ao fechamento de bingos que
funcionam com liminares?
Rodrigo Canellas Dias - A medida
provisória é um passo, e apenas
um passo, no caminho certo. A
medida provisória é um ato do
Executivo, e como ato do Executivo ela não tem condão de eliminar a eficácia de medidas liminares do Judiciário. Uma casa de
bingo que esteja funcionando
com medida liminar não pode ser
fechada com uma medida provisória. Juridicamente, na minha
opinião, isso é impossível. Como
é que o Poder Executivo vai anular uma decisão judicial. Há uma
independência entre os Poderes.
Folha - Qual a forma correta para
se derrubar essas liminares?
Dias - Lei. Uma lei que proíba o
jogo, votada no Congresso, sancionada pelo Executivo e publicada no "Diário Oficial". O que se
pode fazer com a medida provisória é a determinação para que a
Advocacia Geral da União interceda junto às varas para se tentar
derrubar as liminares.
Folha - Quais regulamentações
existem no Brasil sobre os bingos?
Dias - A lei que regulamentava o
jogo de bingo na país era a Lei Pelé
[9615/98]. Em 2000 uma lei revogou parte da Lei Pelé, mas havia
autorizações para funcionamento
de bingos até dezembro de 2002.
A partir de janeiro de 2003, portanto, todos os bingos estão impedidos de funcionar. Os que hoje
estão abertos, ou têm decisão da
Justiça ou se amparam em leis estaduais que são inconstitucionais.
Folha - O que torna o bingo uma
contravenção?
Dias - O bingo é jogo de azar. Jogo de azar é aquele que o ganho
ou a perda dependem unicamente da sorte, sem necessidade de especial habilidade, como na sinuca
ou no boliche. A lei de contravenções penais não especifica quais
são os jogos de azar, só faz a definição genérica no seu artigo 50. O
que aconteceu com a Lei Pelé foi
uma autorização para esse tipo de
jogo de azar, sobre o argumento
de que fomentaria o esporte amador. Com a revogação de trechos
da Lei Pelé, volta a valer a regulamentação da lei de contravenções
penais, no meu entender.
Folha - Por que então a Justiça
concede liminares permitindo o jogo?
Dias - Para alguns juristas, após a
revogação da Lei Pelé deveria ter
havido uma outra lei que dissesse
se jogo de bingo é proibido ou
permitido. Como não há uma lei,
você abre um vácuo legislativo, fazendo com que o judiciário decida. Aí você encontra decisões de
todos os tipos e argumentos.
Folha - As máquinas caça-níqueis
também entram nessa regulamentação de bingos?
Dias - As máquinas entraram em
uma brecha de um decreto do Indesp [Instituto do Desporto], da
época do Rafael Greca. É um decreto obscuro que fica permitida a
importação e a exploração de máquinas eletrônicas programáveis.
Mas o que é máquina eletrônica
programável? Nessa brecha você
coloca as máquinas funcionando.
Essas máquinas não são jogos de
azar, na verdade elas entram na
categoria de estelionato coletivo,
da mesma forma que as máquinas de videopôquer, porque nessas máquinas, o proprietário ou o
explorador consegue alterar o
percentual do ganho.
Folha - Como é a fiscalização feita
no país sobre as casas de bingo?
Dias - As casas de bingo hoje estão absolutamente desfiscalizadas. O maior problema é que as
casas fazem sua própria tributação. Elas fazem a tributação por
declaração. Elas declaram quanto
lucraram e aí o Fisco tributa. Aí fica muito fácil dentro de um ambiente onde não há fiscalização lavar dinheiro sujo.
Folha - Como as casas de jogo de
bingo são utilizadas pelo crime organizado?
Dias - Qualquer casa de jogos
pode ser usada pelo crime organizado. Porque você pode colocar
uma roleta na entrada do bingo e
saber quantas pessoas entraram,
mas nunca vai saber quanto dinheiro ela jogou. Porque quando
você compra uma ficha você não
tem de dar o nome. Digamos que
você tenha R$ 500 mil e compre
isso em fichas, vai para uma máquina caça-níquel e ganha R$ 300
mil. Você vai e tira o dinheiro que
ganhou e aí você lavou os R$ 300
mil. As casas de apostas são foco
de lavagem de dinheiro em todo o
mundo. No Brasil é pior porque
não tem fiscalização. Se você é um
traficante de drogas e precisa lavar US$ 1 milhão e vai e deposita
no banco, o Coaf [Conselho de
Controle de Atividades Financeiras] fica sabendo no dia e te pegam. Se você compra imóveis, a
Receita te pega porque o cartório
de registro de imóveis tem que comunicar. Criam-se então mecanismos periféricos. Compra e
venda de jogador é um ótimo mecanismo. Casa de bingo é outro
mecanismo que a legislação brasileira de combate à lavagem de dinheiro não consegue coibir.
Folha - Se os bingos fossem liberados no país, o senhor acha que haveria condições de fiscalização e
atuação repressora que inibissem o
uso do jogo para lavagem de dinheiro?
Dias - Isso é impossível, com base na experiência mundial. Não
seríamos nós que conseguiríamos
resolver esse problema. Mas há
exemplos de uma boa atuação. A
Espanha tem bingo. Lá é legalizado. Mas para você abrir uma casa
de bingo você tem que prestar
uma fiança de milhões de euros e
só aí tem autorização. Para jogar
você não vai comprar cartela na
papelaria, elas são compradas na
Casa da Moeda. A tributação do
jogo é feita na cartela, o que aumenta o controle.
As máquinas caça-níquel são
dotadas de uma sistema de informática que a polícia tem instrumento técnico para medir quanto
que ela está pagando.
Folha - Por que os jogos são encarados pelo Ministério Público como
fonte de corrupção?
Dias - Esse é um problema que o
jogo acarreta. Ele aumenta a corrupção em todos os níveis. A corrupção anda par-e-passo ao jogo.
O atual escândalo no Rio rasga o
véu de um problema real.
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