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Lei foi o "meio-termo possível", diz ministro
Para Márcio Thomaz Bastos, medida foi
um avanço gigantesco, apesar de suas
limitações; ele rebate as críticas de que
existe uma indústria das indenizações
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
Vinte e cinco anos após a anistia, o ministro da Justiça, Márcio
Thomaz Bastos, 69, explica que
não foi "ampla, geral e irrestrita",
mas era o possível, "um meio-termo, um fio da navalha". Bastos,
que era secretário-geral da seção
paulista da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), diz que o governo Lula é resultado da anistia.
Na sua opinião, aquele momento era o de lutar pela liberdade, e,
hoje, de "buscar a igualdade". Um
desafio, sobretudo, para os anistiados que hoje estão no poder.
Leia trechos da entrevista, concedida na sexta, em seu gabinete.
A solução foi de meio-termo. Embora a Lei da Anistia tenha sido restritiva, ela representou um avanço. Só a possibilidade de as pessoas poderem voltar foi fundamental
Folha - O que fica para a história
daquela anistia tão criticada por
não ser "ampla, geral e irrestrita'?
Márcio Thomaz Bastos - Não era
a anistia ampla, geral e irrestrita
que a sociedade civil queria, mas
era uma anistia, um passo forte,
importante e que funcionou como desencadeador de outras reformas. A Lei da Anistia foi promulgada, e nós já começamos
uma outra campanha, pela revogação da Lei de Segurança Nacional. A campanha das diretas surgiu desse encadeamento.
Folha - E os militares?
Bastos - A anistia foi resultado
da pressão da sociedade e porque
havia dentro do governo alguns
pensadores estratégicos que queriam levar a distensão, mesmo
que lenta e gradual. Golbery [do
Couto e Silva] era um desses homens. Hoje se sabe que ele mantinha reuniões com líderes da oposição como Ulysses Guimarães e
Thales Ramalho e com a OAB.
Folha - Dá para dizer que a
esquerda berrava contra o
projeto porque
fazia parte do
jogo, mas sabia
que era a anistia possível?
Bastos - Acho
que se queria
mais, mas havia pessoas
mais cautelosas e outras
que queriam ir
mais depressa.
A solução encontrada foi de
meio-termo,
um fio da navalha. Embora
a Lei da Anistia
tenha sido restritiva em termos de
liberdades, ela representou um
enorme avanço. Só a possibilidade de as pessoas poderem voltar e
as que estavam presas poderem
sair da cadeia foi fundamental.
Olhando para trás, a anistia foi
um avanço gigantesco.
Folha - E o papel dos anistiados?
Bastos - Os anistiados estão em
grande parte no poder. É só olhar
em volta e ver, começando pelo
José Dirceu e pelo Genoino.
Folha - E o que são eles hoje, já
que o conceito de direita e de esquerda praticamente não existe?
Bastos - Eu defendo a idéia de
que existe, porque eu me considero de esquerda. O que é ser de esquerda hoje? É lutar pelos interesses das maiorias, dos vulneráveis,
é reconhecer os direitos e a igualdade dos aglomerados humanos.
Folha - A liberdade de expressão.
Bastos - Sim, garantir a liberdade de expressão é importante,
mas é preciso um outro vetor para
imbricar com ele: a igualdade. Naquele tempo toda a gente lutava
por liberdade. Hoje o vetor igualdade é tão importante quanto.
Folha - O governo Lula é resultado daquela anistia?
Bastos - Com certeza absoluta,
como o governo Fernando Henrique também foi resultado disso.
Folha - Como o sr. vê o assassinato a pauladas de moradores de rua
de São Paulo? Não fica a sensação
de que a anistia ainda não acabou?
Bastos - Esse crime é como o de
Unaí. Aqueles fiscais foram mortos por causa disso. Seja quem for
que mandou matá-los, foi para
mostrar: "Aqui não tem Estado,
não tem Estado democrático".
Folha - Por que os setores organizados foram às ruas pela anistia
política em 79, mas não fazem o
mesmo agora pela anistia social?
Bastos - É uma pergunta inquietante. A sociedade teria perdido a
capacidade de se indignar? A resposta à pergunta, eu não tenho.
Folha - Será que é porque quem
precisava de anistia naquela época
era a elite, e hoje são os excluídos?
Bastos - É como no caso da tortura. No Brasil, sempre se soube,
desde tempos imemoriais, que
havia tortura contra presos. A indignação só se materializou quando tais práticas chegaram à nossa
classe, à classe média para cima.
Folha - Vivemos um parênteses: a
tortura deixou de existir para os filhos da elite, mas havia antes e
continuou depois para o resto?
Bastos - Só que sobra um resultado positivo. A consciência contra a tortura é hoje muito maior
do que nos anos 50 e 60. Essa
consciência cresceu quando a tortura chegou perto da gente. Mas
há ainda um gueto que resiste. E
esse seria o que chamo de direita.
Folha - E os torturadores, por que
ficaram no limbo. Nem foram anistiados nem foram processados?
Bastos - Acho que eles mergulharam. Não houve perseguição,
revanchismo em relação a eles.
Eles ficaram ao largo da história.
Folha - Mas isso é positivo?
Bastos - Acho positivo de um lado e negativo de outro. Positivo
porque a idéia da anistia é a de
passar uma esponja, esquecer.
Folha - Ulysses Guimarães dizia
que anistia não cabia para torturador. O sr. concorda?
Bastos - Concordo, sim. É um
crime imprescritível.
Folha - Em algum
momento essa ferida
terá de ser reaberta?
Bastos - Não creio.
Folha - Por que alguns responsáveis pelas torturas foram julgados na Argentina e
no Chile, e não aqui?
Bastos - São peculiaridades dos países.
Aqui havia a determinação de esquecer, de virar a página
e de começar uma
outra história.
Folha - A sociedade
se encarregou de impor uma punição moral aos torturadores,
ou nem isso?
Bastos - Acho que
nem isso. Os torturadores acabaram passando ao largo desse embate de idéias e de fixação de responsabilidades.
Folha - E a indústria de indenizações?
Bastos - Não existe isso. O que há
é uma lei de 2002 que estabelece
regras que nós estamos seguindo.
Ela foi feita no último ano do Fernando Henrique, sem dotação orçamentária. O governo Lula pegou isso, refez a Comissão da
Anistia, colocando grandes nomes. Eles estão fazendo um trabalho metódico, minucioso. O presidente alocou R$ 200 milhões em
2004, R$ 300 milhões em 2005 e
R$ 400 milhões em 2006. A comissão trabalhou seguindo estritamente a lei, com critérios rigorosos e recusando milhares de casos, 16.000 já na porta de entrada.
Folha - Como um soldado que
perdeu a perna com uma bomba recebe R$ 500,00 por mês e outros
que perderam o emprego tenham
direito a quase R$ 20.000,00?
Bastos - O espírito da Lei da
Anistia é esse: repor para a pessoa
aquilo que ela perdeu por conta
do arbítrio do regime autoritário.
Isso pode levar a essas diferenças.
Se a pessoa tinha padrão alto, repõe esse padrão; se tinha padrão
médio, repõe o padrão médio.
Folha - O governo tem sido muito
criticado pela condução da questão
dos desaparecidos. Acha possível
dar alguma resposta às famílias
que reclamam os restos mortais?
Bastos - Há uma comissão fazendo muitos trabalhos, muitas
diligências. Acredito que a gente
possa apresentar um resultado logo. Em setembro, por exemplo.
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