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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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ENTREVISTA

Ex-ministro de FHC diz que PT não tem agenda para retomar crescimento e sugere que BNDES precisa de divã de psicanalista

Mendonça prega estatização do setor elétrico

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso, o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros tem uma receita inusitada para desatar o nó do setor elétrico do país: a reestatização. "Estou convencido de que tem que voltar tudo pra trás. Estatiza. As empresas privadas que estiverem bem, tudo bem. O que não estiver, volta tudo pro Estado", diz Mendonça. "Estou convencido de que enterraram uma caveira de burro lá [nas Minas e Energia], ironiza o ex-ministro diante da sucessão de erros que identifica nas tentativas frustradas de reestruturação do setor.
Crítico histórico do malanismo, Mendonça elogia a rendição do PT à ortodoxia para enfrentar a crise econômica no horizonte imediato. Mas faz ressalvas sérias. Vê, em primeiro lugar, oportunismo político na conversão dos cristãos novos do neoliberalismo, o que os tornaria suspeitos diante dos mercados. Além disso, avalia que o PT não tem agenda ou propostas para dar o próximo passo -enfrentar a vulnerabilidade externa da economia brasileira-, o que levará o governo de Luiz Inácio Lula da Silva a reeditar o "stop and go" circular e frustrante dos anos FHC.
Sinal dessa miopia estratégica da esquerda para o crescimento seria, segundo Mendonça, o papel marginal do BNDES dentro do governo. "O banco não só não sabe qual seu papel no governo como ainda está mergulhado numa crise de identidade total", afirma.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha na última sexta, na casa de Mendonça de Barros.
 

Folha - Em entrevista à Folha dias após a vitória de Lula, o sr. disse que se o governo quisesse ser bem sucedido teria que "passar vergonha" no primeiro ano para poder ter possibilidade de algum êxito nos outros três. Elevação da taxa de juros, meta superávit maior... Estamos no bom caminho?
Luiz Carlos Mendonça de Barros -
Acho que naquela época já estava claro, mas hoje tenho mais claro que um dos fatores mais importantes na decisão que foi tomada -que foi exatamente a de passar vergonha mas enfrentar a crise- foi o que aconteceu na Argentina. A Argentina tinha mostrado ao PT que aquele caminho da moratória para interromper o pagamento de juros e sobrar recursos para investimento aqui dentro levava a uma situação caótica.
Esse fator histórico, essa crise aqui na nossa fronteira foi muito importante. Hoje nós sabemos, até pelo testemunho do [ministro Antonio" Palocci, que essa decisão já havia sido tomada em junho. O que abre um espaço muito interessante para perguntar, se eles tomaram essa decisão bem no começo da campanha, por que não passaram isso à população.
Isso foi uma decisão de cúpula, ocultada da opinião pública e, pior ainda, ocultada dos próprios militantes do PT.
Veja: se você recuperar o que o Lula falou sobre o aumento da taxa de juros em dezembro, quando já estava eleito... Ele atacou a decisão dizendo que era uma medida recessiva e que servia apenas para aumentar o lucro dos bancos. É realmente aí uma postura de uma demagogia e de uma mentira extraordinária, que nem precisava.

Folha - Houve estelionato?
Mendonça de Barros
- Em termos de economia, eles simplesmente assumiram o discurso do ministro [Pedro] Malan. Mantiveram os mesmos instrumentos de ação. Podiam ter mantido o compromisso com a ortodoxia tendo promovido correções que já tinham sido debatidas o suficiente sobre os instrumentos do Malan. Nem isso fizeram, com medo...

Folha - Dos mercados.
Mendonça de Barros -
É. "Eu não tenho credibilidade... Todo mundo sabe que eu estou fazendo uma coisa aqui meio de mandraque, não sou eu, não é o meu público..." Então ficaram com medo. É a mesma história do sujeito que não estuda, que cria a imagem de um sujeito vagabundo. Em algum momento que ele precisa mudar a imagem, tem que estudar mais que o sujeito que vinha estudando na média. Foi isso que aconteceu.
Do ponto de vista efetivo da economia, eles permitiram com essa atitude que esse processo de ajuste da balança de pagamentos terminasse e nós chegássemos agora com esse equilíbrio, que é um equilíbrio instável, calcado na recessão. Mas você não pode manter o país eternamente assim.

Folha - O que o sr. prevê para os próximos meses?
Mendonça de Barros -
Com essa estabilização no nível atual, estamos falando num crescimento zero este ano. Com queda do nível de emprego e, pela aceleração da inflação, queda do poder aquisitivo. Podemos repetir a mesma performance do ano passado.

Folha - E agora?
Mendonça de Barros
- Do ponto de vista do mercado, que abstrai o lado real da economia, só olha para os lados fiscal e monetário, certamente estão pensando o seguinte: tudo bem, mas agora o grande teste é a reforma da Previdência. Porque todo mundo sabe que esse superávit primário que estamos tendo não se sustenta no tempo.

Folha - A reforma da Previdência não figurava como tema de destaque na campanha. Por que se tornou prioritária para o PT?
Mendonça de Barros -
Eu conversei com o Palocci. E ele queria saber o que precisava fazer para ganhar a confiança do mercado e conseguir estabilizar a parte externa da economia. Ele ouviu isso: você precisa mostrar um compromisso com a estabilidade fiscal, com a estabilidade da relação dívida/PIB e portanto tem que mostrar superávit primário suficiente para responder a essa questão que está na cabeça do mercado. Só que para fazer isso, não adianta você fazer isso no Orçamento de 2003, tem que mostrar que pelo menos nos próximos anos esse número está garantido. Se você não mexer na Previdência, não consegue fazer isso.
Depois que fizer isso, tem que mostrar que o governo tem uma agenda para resolver nosso problema central, que é a fragilidade externa. O problema é que o PT não tem essa agenda.
Não tenho dúvida de que o Palocci ouviu dos setores mais ortodoxos que isso é besteira. Repetiram todo o discurso do Consenso de Washington: basta uma situação fiscal sólida, uma política monetária com metas de inflação, o dinheiro entra aqui como maná de Deus. Tenho medo de que ele tenha caído nesse conto do vigário. Não acredito que eles tenham essa agenda e, o que é pior, estou começando a acreditar que o Palocci acha isso uma besteira.
De maneira que o PT hoje tem uma proposta de política econômica exatamente igual à do Malan. Não tem nenhuma diferença.

Folha - Não têm nada?
Mendonça de Barros -
Não têm. Têm a agenda do Malan e nada mais. Sinal evidente de que não têm [agenda], de que não estão pensando e têm raiva de quem pensa é a briga do ministro do Desenvolvimento [Luiz Fernando Furlan] com o presidente do BNDES [Carlos Lessa", às turras pelos jornais.

Folha - A orientação do BNDES está equivocada?
Mendonça de Barros
- O BNDES está quase precisando de um divã de psicanalista. Os dois últimos presidentes o [Francisco] Grow e o rapaz que o sucedeu [Eleazar de Carvalho Filho] fizeram uma mudança estrutural no banco e ele hoje responde ao desenho operacional de um banco de Wall Street. Chega o Lessa o leva o BNDES para a época dos militares, do ponto de vista do projeto do banco e até pela presença de militares dentro do banco.
Imagina uma burocracia como a do BNDES, de nível e com quadros excepcionais, como vai reagir nesse antagonismo de estrutura e de projeto. O BNDES está absolutamente paralisado. O banco não só não sabe qual seu papel dentro do governo, como ainda está mergulhado numa crise de identidade total.
Essa para mim é a grande decepção do PT: encarar a dependência externa de uma forma tão contemplativa.

Folha - Mas o tema sempre esteve muito presente na retórica do PT.
Mendonça de Barros -
Esqueceram. Eu não sei por quê. Tenho na verdade duas decepções com o PT. A decepção ética, o comportamento deles em relação ao seu público, de mudança, mentira, justificativa sobre mudança de posição; e isso vai custar, não sei quando e como, mas vai.
A segunda é na economia, menos pela opção pela ortodoxia, porque é correta, mas porque acho que é uma opção pela ortodoxia burra, limitada.

Folha - Isso contribui para um desgaste precoce do governo?
Mendonça de Barros -
Esse envelhecimento precoce tem duas vertentes. Uma é que as pessoas vão começar a perceber que as condições de vida não mudaram nada, e eventualmente podem até piorar. A outra, mais séria, é essa da falta da verdade. Do sentimento de que foram enganados, de traição, de engodo.

Folha - Não haveria um contrapeso dentro do governo?
Mendonça
- É uma coisa engraçada. Estamos vendo uma mistura de [Antonio" Gramsci [filósofo marxista italiano (1891-1937)] com Malan. O governo é isso. Tem um pedaço de Gramsci, outro de Malan. Tem que ver qual híbrido que vai sair disso aí. Espero que saia pelo menos a inteligência do Gramsci.

Folha - Se não prevalecer o lado da economia ortodoxa, o que podem colocar no lugar?
Mendonça de Barros -
Uma coisa é clara: a opção pela ortodoxia do PT não é de profundidade, é oportunista. Quando se faz uma opção oportunista, em tese está implícito que lá na frente você vai abandonar, então não vale a pena perder tempo para tentar arrumar. O que se vê no governo é que não existe essa busca.

Folha - Eles podem terminar reféns dessa ortodoxia oportunista? Podem ter que mantê-la durante quatro anos?
Mendonça de Barros -
Podem. A pior coisa que pode acontecer para o PT é que no final do ano, por algum motivo, há um começo de recuperação da economia mundial, isso passa um pouco para o Brasil, aí todo mundo diz: tá vendo? É esse o caminho. Aí um ano a gente cresce dois, quatro por cento, de repente tem uma outra crise, e volta. Que foi o Fernando Henrique, o segundo mandato.

Folha - Como é que o sr. vê as dificuldades no setor elétrico?
Mendonça de Barros -
Estou convencido de que enterraram uma caveira de burro lá [no Ministério das Minas e Energia]. Só passou porcaria por lá. Na época do Fernando Henrique, era da cota política do ACM. Colocou um ministro que era um cara bom [Raimundo Brito". Mas, como tudo que é do ACM, ele não mandava, tinha um cara que mandava em baixo, era aquela confusão.
Depois teve o apagão. Na crise, [o ex-ministro da Casa Civil] Pedro Parente chamou para si a responsabilidade. O Pedro Parente nunca entendeu, nunca viu, nunca soube de energia. A relação mais próxima dele com a energia deve ser quando chega perto de um interruptor de luz.
Agora vem o PT. A ala esquerda. [O setor de energia e o BNDES] são as áreas operacionais onde está todo mundo [da esquerda]. Esse pessoal resolve fazer uma mudança total no sistema. Não se sabe ainda o que vai dar. Estou convencido de que tem que voltar tudo pra trás. Estatiza.
As empresas privadas que estiverem bem, tudo bem. O que não estiver, volta tudo pro Estado. Passa tudo para o governo federal. Não deixa voltar para os Estados, que vão usar isso como emissão de moeda, roubalheira, como na época do Quércia [Orestes Quércia, ex-governador de São Paulo].

Folha - É o caso da Eletropaulo?
Mendonça de Barros -
A Eletropaulo é um exemplo típico que deve voltar para a Eletrobrás. É preciso fazer um acordo com uma das subsidiárias da Eletrobrás para que faça a gestão da empresa. O importante nisso tudo é reorganizar o setor. Seguir com a privatização agora seria obrigar o Estado a pagar um preço ao setor privado pela bagunça, que é resultado de erros cometidos no passado.


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