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BRASIL PROFUNDO
Professora, que trabalhou oito anos com a etnia que matou 29 garimpeiros, propõe exploração de outros produtos
Para antropóloga,
diamante prejudica
o índio cinta-larga
JOÃO CARLOS BOTELHO
DA REDAÇÃO
A antropóloga Carmen Junqueira, especialista em etnologia
indígena e professora titular da
PUC de São Paulo, diz que os cintas-largas não deveriam receber o
direito de explorar os diamantes
que são abundantes em suas terras. As pedras foram o motivo de
29 garimpeiros terem invadido
área da etnia em Rondônia e acabado sendo mortos pelos índios.
"Eles se envolvem com garimpeiro, começa a entrar álcool,
droga, as dissensões crescem",
afirma Carmen, que trabalhou de
1978 a 1986 com os cintas-largas e
tem obras no Brasil e no exterior
sobre o grupo. "Se colocam a mão
no diamante, caem num consumismo." Ela sugere um projeto de
economia auto-sustentável para a
etnia, com a exploração de outros
produtos de suas terras, como a
castanha, as essências e o mel.
Folha - Como é o cinta-larga?
Carmen Junqueira - Eles têm
duas características. Eles se queixavam logo nas primeiras viagens: "Vocês já mataram muitos
dos nossos". Buscavam uma forma de expressar a falta de paz,
porque, ou era invadida sua área,
ou eles sofriam massacre, como
em 1962. A segunda característica
é o refinamento estético. Eles são
índios com coisas lindas, festas
muito bonitas. E tinham uma vida
de trabalho. Eles têm agricultura,
pescam, colhem mel e castanha,
mas a paixão deles é caça. Não
existe de fato um índio cinta-larga. Esse nome nós é que demos,
por causa dos cinto que eles usavam, mas são vários subgrupos.
Os que eu trabalhava se chamam
kabã. Os da terra Roosevelt chamam-se mã. E brigam entre si,
porque fazem troca de mulheres.
Folha - Como foram as experiências da senhora com eles?
Carmen - É uma sociedade que,
de início, você julga que não colabora. É assim: você escorrega, que
nem uma vez, levei um escorregão. Eles riem, não ajudam. Aí,
depois, eu percebi. Eles valorizam
a auto-suficiência. Se você pedir
ajuda, eles dão na hora, mas ninguém oferece, porque é ofensivo.
Eu dormia em maloca, comia como eles, tomava banho no rio, coletava mel e ficava coberta de abelha, mas das que picam de leve.
Folha - Qual foi o primeiro contato deles com outras pessoas?
Carmen - Vão aparecer registros
nos anos 20 de que eram acossados por castanheiros e pessoas à
procura da borracha. Depois, há
comentários já na década de 1960,
quando começou de fato o boom
de garimpagem em Rondônia. Aí,
passam a aparecer os atritos.
Folha - Hoje, os cintas-largas são
bem integrados à sociedade?
Carmen - Não, eles nunca se assalariaram, a não ser um ou outro,
mas, como povo, não. Mas eles já
estão falando português, vão às cidades. Já estão bem mais familiarizados com nosso estilo de vida.
Folha - Que problemas eles têm?
Carmen - O principal problema
deles é compartilhado com todos
os povos indígenas. Quando a sociedade entra em contato com
eles, conseguimos desorganizar a
economia deles, ou porque nós
poluímos os rios, ou porque nós
desmatamos. E começa a sedução
da mercadoria. Nós levamos também doenças. Então, quais as necessidades? Atendimento de saúde. Escola. Eles querem falar bem
português, participar. Defesa das
terras. E uma forma de obter rendimento, porque não adianta viverem só de caça, pesca, coleta.
Folha - Regularizar a exploração
de diamantes é uma solução?
Carmen - Não, porque eles acabam se envolvendo com garimpeiro, começa a entrar álcool,
droga, as dissensões aumentam.
Porque esses índios cintas-largas
são antipatizados por uma boa
parte do povo de Rondônia e de
Mato Grosso porque eles não têm
uma atitude servil. Eles são arrebitados. Esse contato com garimpeiro daria eternamente confusão. Mesmo que fosse mineradora, daria confusão, porque eles
não querem ser mandados. E exploração de diamantes, só se fosse
pelo governo, mas é problemático, porque não sei se o governo
conseguiria esse grau de eficiência
nesta onda de Estado mínimo.
Folha - Qual é a solução?
Carmen - Eu acho que produtos
da mata. Eles têm castanha, especiarias da mata. A mata deles é
cheia de remédios, drogas, essências, que, seguramente, terão utilidade aqui. Eventualmente, mel,
como estão fazendo no parque do
Xingu. Vão técnicos lá, montam
os apiários. Os cintas-largas têm
mais de 30 espécies diferentes de
mel. Nós conhecemos dois ou
três. Agora, isso tudo precisa ser
feito não artesanalmente. São trabalhos para você exportar, obter
mercados, para que possam ter a
vida que querem. Se quiserem
continuar com o estilo deles, continuam. A tendência é mudar,
mas vamos fazer com que mudem para uma vida mais calma.
Folha - Como é o temperamento
dos cintas-largas?
Carmen - Eles reagem prontamente à invasão de terra. Temem
muito a invasão, os massacres, os
assassinatos dos quais foram alvo.
Folha - Fora isso, como são?
Carmen - São muito agradáveis,
alegres. Gostam de farra, teatro.
Folha - Os cintas-largas já tiveram conflitos com que grupos?
Carmen - Castanheiros, madeireiros, invasores, caçadores, garimpeiros de ouro e de diamante.
Folha - O que houve no último
confronto com os garimpeiros?
Carmen - Não creio que os garimpeiros tenham entrado de peito aberto. Teriam medo, ou só se
são de outro Estado e não conhecem a fama do cinta-larga. Imagino que algum grupo tenha feito
um trato com eles e que a maioria
não topou por algum motivo.
Folha - Entre os cintas-largas, há
assassinatos. Como eles vêem isso?
Carmen - É muito grave. Mesmo
entre eles, não é muito comum assassinatos. Quando eles têm essas
incursões, é mais para assustar.
Eu acho que assassinatos com esse volume [dos 29 garimpeiros] só
se equivalem aos assassinatos de
cintas-largas em 1962. Nunca ouvi
falar de uma coisa tão violenta. É
por isso que acho que os motivos
não foram só de retirada dos invasores. É por isso que eu acho, não
posso afirmar, que deve ter havido coisa grave, ou com mulheres,
porque onde têm garimpeiros
acaba havendo envolvimento
com mulher, ou desacato às chefias cintas-largas, ou humilhações, porque esses garimpeiros,
como também madeireiros, não
têm respeito nenhum pelos índios. Eles acham que índio e bicho
é mais ou menos parecido. Então,
acho que deve ter havido uma falta muito grave, porque, dá para
perceber, pelo o que eu vi, que eles
mataram com ódio, e isso não é
do estilo dos cintas-largas fazer.
Folha - Foi uma atitude extrema?
Carmen - Extrema, em resposta a
coisas muito graves que aconteceram na área e que não sabemos.
Folha - Para a senhora, os cintas-largas mataram porque as outras
possibilidades não funcionaram?
Carmen - É. Eles devem ter esgotado todas as possibilidades.
Folha - Há alguma solução viável
para não continuarem as invasões?
Carmen - Eu acho que o Estado
brasileiro tem um papel fundamental aí, de realmente impedir
isso, não só para os cintas-largas.
Folha - Para evitar isso, é necessária também a ajuda dos índios?
Carmen - Eles fazem isso, mas
precisaria, realmente, de alguma
coisa, porque as áreas são extensas. Então, precisaria ter vários recursos. Ao primeiro sinal de invasão, ter um governo que dê uma
resposta imediata, porque não
adianta mandar um ofício, esperar a resposta do ofício. Agora, isso tudo também é fruto da desigualdade social no Brasil, porque
esses pobres garimpeiros, tantos
os mortos quantos os vivos, não
estou falando dos mandantes deles, é a "peãozada" que entra. É
muito triste que eles tenham morrido. Eles também vivem numa
penúria. Eles resolvem arriscar
para poder também ter uma vida
melhor. Não são as elites que sofrem com a possibilidade de atrito
com o índio. Esses coitados dos
garimpeiros são praticamente
pessoas paupérrimas. O problema da terra, com a reforma agrária e assentamentos bem equipados, nós não temos nada disso. O
povo vive em desespero. Então,
ele tenta atacar pelo lado do mais
fraco, que é o lado do índio.
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