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DIRETAS, 20 ANOS
Democracia conduziu os líderes das diretas ao poder nas décadas seguintes, mas problemas socioeconômicos permanecem
Perdedores de 84 governam país há 10 anos
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM BRUXELAS
O palanque das Diretas-Já acabou vencendo, embora com atraso de dez anos, para permanecer
no poder nos dez anos seguintes.
É esse o resultado desses 20 anos
pós-derrota no Congresso Nacional da emenda Dante de Oliveira,
caso se tome como pró-diretas os
adversários de sempre da ditadura militar (mais aqueles que migraram para a oposição desencantados com o regime que inicialmente apoiaram).
Esse heterogêneo conglomerado tomou o poder, a rigor, em
1993, quando Fernando Henrique
Cardoso assumiu o Ministério da
Fazenda, no governo de Itamar
Franco. Nele permaneceu com o
próprio FHC até 2002, e ganhou
um terceiro mandato com Luiz
Inácio Lula da Silva, a partir do
ano passado.
Lula era o líder indiscutível da
esquerda no palanque das diretas.
FHC dividia a liderança da centro-esquerda com, entre outros,
Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Tancredo Neves, seus padrinhos políticos, hoje todos já
mortos.
Fernando Henrique oscilava,
aliás, entre Ulysses, que teoricamente seria o candidato de um
PMDB ainda muito grande e algo
mais definido ideologicamente, e
Tancredo, o conservador que acabou sendo o candidato porque a
eleição direta só chegaria cinco
anos depois.
O que é paradoxal é que, uma
vez no poder, FHC e Lula praticaram políticas que o sentido comum associa mais à direita e, por
extensão, ao regime militar ao
qual ambos se opuseram.
A sabedoria convencional diz
que a esquerda é estatizante e, a
direita, liberalizante. E as faces
políticas mais notórias da ditadura militar foram, a princípio, as
dos ultraliberais Roberto Campos
e Octávio Bulhões.
Mas o ciclo militar, longe de desestatizar, criou um colar de empresas estatais, para acrescentar
às que já herdara do chamado nacional-desenvolvimentismo que
predominara a partir dos anos 40.
Para não mencionar o fato de que
matou as liberdades públicas que
os liberais diziam defender.
O palanque das Diretas-Já começou a ser armado justamente
no momento em que o cerco autoritário na América Latina estava
se esgarçando. O primeiro (e modesto) comício das diretas diante
do estádio do Pacaembu, em São
Paulo, foi contemporâneo, por
exemplo, da posse de Raúl Alfonsín como presidente na Argentina, que colocava fim a uma ditadura militar de sete anos.
Mas foi contemporâneo também do princípio do fim da Guerra Fria, o combate ideológico entre Estados Unidos e União Soviética, que simplificava ao extremo
a divisão política.
Quando os primeiros comícios
sacudiram o Brasil, direita e esquerda ainda eram palavras que
pareciam definir claramente cada
ator político. No caso, a simplificação levaria a dizer que a esquerda estava no palanque das diretas,
a direita na trincheira oposta.
Mas, quando o palanque das diretas finalmente venceu, dez anos
depois, a Guerra Fria já havia sido
vencida pelos Estados Unidos.
Tornou-se mais fácil para um governo centro-esquerdista, como o
de Fernando Henrique Cardoso,
empenhar-se, como ele próprio
chegou a dizer em algum momento, em desmontar a era Vargas (do presidente Getúlio Vargas
que governou 15 anos como ditador, a partir de 1930, e como presidente legítimo de 1950 até seu
suicídio, em 1954).
O Estado brasileiro, que chegou
a administrar hotéis e fábricas de
tecidos, virtualmente desapareceu como empresário nos anos
FHC. Lula, teoricamente mais à
esquerda que seu antecessor, não
fez rigorosamente nada até agora
para mudar o quadro herdado.
De alguma maneira, é razoável
dizer que as Diretas-Já, se ganharam o governo por meio de dois
de seus líderes, perderam o grito
("mudanças já") que se escondia
atrás da reivindicação de eleição
presidencial direta e, por extensão, de devolução da soberania a
seu legítimo titular, o eleitor.
De fato, diretas e mudanças pareciam irmãs siamesas na mobilização popular, a maior, de longe,
de toda a história brasileira. Não
fosse o visível esgotamento do ciclo militar, tanto institucional como econômica e socialmente, é
pouco provável que as ruas se
pintassem de amarelo, a cor das
diretas, com a intensidade que se
viu nas grandes capitais e até em
cidades menores.
Nesses 20 anos, o país avançou
institucionalmente como nunca
em todos os seus 182 anos de história independente. Não há veto a
partido político algum; as centrais
sindicais foram reconhecidas; o
movimento social goza de direitos negados a maior parte do tempo; não há a menor restrição às liberdades públicas.
As eleições haviam ficado, desde 1966 até 1982, limitadas a um
bipartidarismo artificial.
Governadores ganharam a depreciativa designação de biônicos, por serem eleitos indiretamente, o que acontecia também
com os prefeitos de capitais e de
áreas de segurança.
O "colégio eleitoral" que escolhia o presidente da República era
formado pelo Alto Comando do
Exército, com participação nem
sempre relevante das duas outras
forças. O Congresso apenas carimbava a escolha dos generais.
Quando o grito de "diretas já"
estourou nas ruas, o brasileiro
não elegia o presidente diretamente havia 24 anos, desde que
Jânio Quadros foi eleito em 1960,
para renunciar sete meses após a
posse. A derrota da emenda Dante de Oliveira acrescentou cinco
anos ao jejum do eleitorado, e só
em 1989 o presidente voltou a ter a
legitimidade de origem.
Hoje, ao contrário, não há um
único vereador, prefeito, deputado (federal ou estadual), senador,
governador cujo emprego não dependa das urnas.
Mas, econômica e socialmente,
os problemas não são diferentes
do que eram quando o grito de
"diretas já" ecoou no país todo.
De certa forma, são até maiores,
porque, até o início dos anos 80, o
Brasil vinha de um século de crescimento econômico que, na média, foi o maior do mundo.
Hoje, vem de duas décadas de
profunda anemia, que jogaram o
desemprego para níveis recordes.
Os palanqueiros das diretas
sempre achavam um jeito de incluir em seus discursos a crítica à
distribuição de renda profundamente injusta. Foi da oposição ao
regime militar que nasceu a expressão "Belíndia", para simbolizar que, no Brasil, uma pequena
Bélgica desenvolvida convivia
com uma gigantesca Índia pobre.
Criação do economista Edmar
Bacha, um dos "economistas da
oposição" que não perdoavam
Delfim Netto, o economista que
mais tempo passou na Fazenda
durante o ciclo autoritário.
Muitos dos "economistas da
oposição" viraram governo quando o palanque das diretas finalmente chegou ao poder em 1993.
Outros ainda tiveram de esperar
até o ano passado, mas também
passaram ao governo com a posse
de Lula na Presidência.
Nem eles nem Delfim Netto,
transformado em conselheiro de
seus ex-críticos, ousam dizer que
o Brasil deixou de ser uma "Belíndia". É a dívida que o sonho das
Diretas-Já não conseguiu pagar
até agora.
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