São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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ELIO GASPARI

Ave Lula, Ave grevistas

O melhor programa social do governo de Lula está em curso neste magnífico ano de 2004, aquele em que os trabalhadores saíram da pasmaceira em que foram atirados em 1995. Trabalhador não quer cartão, quer salário. Esse sentimento já levou mais de 1 milhão de brasileiros a disputar com os patrões os reajustes de seus contracheques. São bancários, metalúrgicos, petroleiros e dezenas de outras categorias organizadas cujos orçamentos a ekipekonômica mordeu e a banca comeu. Buscam uma parte do que lhes foi tungado.
Pedem reajustes salariais com a inflação (cerca de 7%) somada a um aumento real (coisa de 3% a 5%). São brasileiros que ganham, grosseiramente, entre R$ 1.500 e R$ 3.000. Ao seu lado não há economistas-de-consultoria nem plenipotenciários do Banco Mundial ou do FMI. É gente que descende da choldra parisiense que se reunia na place de Grève durante a Idade Média. Uma escumalha que nada tem a botar no pano verde senão o suor de seu rosto. Gente como o baiano Gilson Menezes, que às 7h do dia 12 de maio de 1978 entrou na oficina da Scania, em São Bernardo, e parou a fábrica, mostrando ao Brasil que os trabalhadores podiam. Estarreceu os sábios, estonteou a ditadura. Meses depois, em comandita com o Dops, a firma infiltraria olheiros nas assembléias. Não adiantou nada. Os metalúrgicos e Gilson Menezes puderam tanto que o presidente do Sindicato de São Bernardo é o atual presidente da República.
As greves e as reivindicações dos trabalhadores são o reverso do Brasil que entra na fila para ganhar o Bolsa-Caraminguá. Não fazem parte do Brasil da solidariedade com a miséria, no qual o ministro de combate à fome, visconde Patrus Ananias (Desenvolvimento Social), tem um funcionário (DAS 3) encarregado de seu cerimonial. São o Brasil que não vive dos juros do doutor Henrique Meirelles, não opera na CC5 nem está no "mensalão", mas produz o superávit comercial de US$ 30 bilhões.
Os trabalhadores das montadoras do ABC, do Paraná e da Bahia já buscaram o seu. Os bancários mandaram ao lixo uma proposta patronal aceita pela confederação dos empregados, filiada à CUT. Como diria Lula, o brasileiro não desiste nunca. Iansã e Santa Bárbara quiseram que isso acontecesse num governo em que três ex-presidentes de sindicatos de bancários são chamados de Vossa Excelência em Brasília (Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini e Olívio Dutra).
A mobilização dos trabalhadores não é incentivada por Lula, mas é uma esplêndida conseqüência de sua presença no Planalto. Em quase dois anos de governo ele importou um avião de potentado árabe e entrou no Copacabana Palace pela porta dos fundos, mas nunca deu ao empresariado um só sinal de que estaria ao seu lado contra a patuléia. Faz quase dez anos que os tucanos esmigalharam uma greve de petroleiros que obrigava o trabalhador a carregar nas costas os botijões de gás de cozinha.
As filas dos caixas eletrônicos e das casas lotéricas foram criação da banca que não pagou salários decentes aos seus empregados. Antes de praguejar contra o trabalhador da iniciativa privada parado, vale a pena pensar no empregador que adoraria transformar um desconforto momentâneo numa satanização do grevista. É preferível gramar a fila do caixa do que cevar um condomínio financeiro que mantém quase 3 milhões de trabalhadores nas filas do desemprego.
Greve é um momento perigoso e sublime na vida do trabalhador. Não é um jogo de ganha-ganha. Há categorias que têm força para derrotar os patrões e há categorias que não a têm. Quem não a tem, como os petroleiros de 1995, arrosta o fracasso. É o jogo jogado.
O que o governo de Lula oferece ao país é um clima de ordem, progresso e decência no qual as reivindicações dos trabalhadores e mesmo suas greves são parte da paisagem, como seu Ômega australiano. O Bolsa-Dissídio é o melhor dos programas sociais, pois dá ao cidadão a capacidade de lutar pelo valor do seu trabalho, em vez de remunerá-lo pelo tamanho de sua miséria.

Briga de tio
A briga dos doutores Paulo Skaf, presidente eleito da Fiesp, e Claudio Vaz, do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo, está mais para barraco do que para choque de idéias ou interesses legítimos do empresariado.
Vaz é o senhorio do 14º andar do monolito preto da avenida Paulista, onde fica o gabinete do presidente da Fiesp, e não pretende entregar à Skaf o salão ocupado até hoje por Horácio Lafer Piva.
O presidente do Ciesp foi procurado pelo empresário Benjamin Steinbruch, ponte de todas as ilhas que elegeram Skaf. Conversa vai, conversa vem, Vaz ofereceu a seguinte solução: o novo presidente da Fiesp ganha uma sala no 14º andar, onde ficará também a sua. Aquela onde hoje trabalha Lafer Piva fica fechada.
Contraproposta de Eremildo, o idiota: Em vez de os maganos deixarem a melhor sala vazia, alugam-na a dez famílias de desempregos recrutadas nas ruas de São Paulo. Cobram um aluguel de R$ 10 mensais a cada uma delas. A Fiesp fatura R$ 100 e fica todo mundo feliz.
Na sala de Piva cabem 20 famílias, mas o idiota acha que nessa solução haveria pobres demais naquele poderoso 14º andar.

Retrato de Francis
É muito bom o livro "Paulo Francis", do jornalista Daniel Piza. Publicado numa coleção de pequenas biografias (130 páginas), consegue contar a vida de Francis mostrando o charme do Rio dos anos 60 e suas caminhadas por Nova York nos anos 80 sem concessão ao folclore. Livrou-o da praga que infesta o anedotário de toda a geração do jornalista morto em 1997, aos 67 anos.
Um personagem odiado pela esquerda da qual se afastou e amado por uma direita de quem nunca gostou merecia um ensaio biográfico como o de Piza. O repórter narra a rotina do escritor. O crítico apresenta as polêmicas de Francis sem tietagem.
Sem folclore e sem tietagens, esse era o mundo em que Francis gostaria de ter vivido.

Aviso amigo
Os bancários têm até sexta feira, dia 29, para voltar a atender à patuléia. Se não o fizerem, deixarão os trabalhadores sem acesso ao dinheiro do salário de setembro. O andar de baixo não tem internet nem cartão. A ele, os banqueiros dão fila.
Os grevistas podem ter caído numa armadilha da banca ou numa arapuca do calendário, mas, se ficarem nela, estarão fritos.

Pedágio
Não é só no comércio de gás que os traficantes das favelas do Rio estabeleceram uma PPP (Parceria de Pilantras Privados). Eles também cobram pedágios e intermedeiam o acesso de produtos nos setores de bebidas e cigarros.
Não se trata de um tráfico organizado. O mais inquietante é que essas iniciativas resultam de um estágio de desorganização do tráfico.

Lula levou Fanon para a ONU
Credito:Folha Imagem+Alex Freitas
Legenda:Na montagem, Lula discursando na ONU. Atrás, Frantz Fanon e Franklin Roosevelt
As citações feitas por Lula em seu discurso na ONU podem gerar duas boas iniciativas culturais. A primeira seria a reedição de "Os Condenados da Terra", do pensador caribenho Frantz Fanon. A segunda, a edição, em português, do livro "Freedom from Fear" ("Livres do Medo", "Sem Medo do Medo", ou coisa parecida), do professor americano David Kennedy.
Frantz Fanon foi um brilhante radical. Morreu de leucemia aos 36 anos, em 1961. O apostolado da violência fez dele um grande herói da esquerda negra americana dos anos 60. Era um dos santos do altar de Glauber Rocha. Ficou fora de moda. Não é lembrado na Martinica, onde nasceu, nem na Argélia, por cuja independência batalhou. Lula começou seu discurso atribuindo a Fanon a seguinte frase:
"Se queres, aí a tens: a liberdade para morrer de fome".
A reedição de "Os Condenados da Terra" permitirá uma visita a esse texto incendiário, pra lá de MST. Nele, Fanon vocaliza, num exemplo, a arrogância das potências coloniais e diz:
"Já que vocês querem a independência, tomem-na e morram de fome". (Na edição brasileira, "danem-se", na americana, "starve", e no original francês, "crevez".)
É útil continuar a leitura no ponto em que Lula parou: "Não resta aos dirigentes nacionalistas outro recurso senão voltar-se para seu povo e pedir-lhe um enorme esforço. Desses homens famintos exige-se um regime de austeridade".
Dois dias depois, Lula aumentou a meta de superávit primário de Pindorama para 4,5%. Vai tirar mais dinheiro da economia para pagar a banqueiros.
Depois de ter citado um radical, o companheiro lembrou uma famosa frase de Franklin Roosevelt. Segundo Lula, é a seguinte:
"O que mais se deve temer é o próprio medo".
No seu primeiro discurso de posse, em 1933, Roosevelt deu aos seus ouvintes um dos mais bonitos parágrafos da literatura política mundial:
"A única coisa de que devemos ter medo é do medo". ("The only thing we have to fear is fear itself.") Na repetição da palavra medo, Roosevelt reforçou o recado. Na utilização de um sinônimo, o tradutor de Lula diluiu-o. Novamente, a continuação da frase seria útil ao companheiro: "Esse terror indefinido, irracional e injustificado que paralisa os esforços necessários para se converter uma retirada num avanço". Nesse discurso Roosevelt acusou a banca de ter desertado os interesses da civilização por conta de uma mistura de incompetência e teimosia.
O livro do professor Kennedy, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2000, conta a história da Era Roosevelt. Vai da crise de 1929 ao fim do presidente e da Segunda Guerra, em 1945. Nele se aprendem coisas surpreendentes. O colapso da Bolsa de 1929 não foi a causa da Depressão dos anos seguintes. Olhados isoladamente, todos os programas sociais de Roosevelt deram errado, o que deu certo foi o conjunto (com FFHH aconteceu o contrário).
Lendo-o, o PT Federal descobrirá que o bonde de Roosevelt passou por ele em janeiro de 2002, quando Lula assumiu. Quanto a Fanon, Lula poderia tê-lo lido há 20 anos. Hoje é uma linda peça de antiquário de um radicalismo perdido. Citando Fanon na ONU e elevando o superávit primário em Brasília, Lula sacraliza o estilo Olívio Dutra: faz-se fotografar andando de bicicleta num evento a que chegou de automóvel oficial.

O comissário Gushiken voltou a atacar
Credito: Sisson+ Folha Imagem+Alex Freitas
Legenda:Na montagem, o comissário Gushiken
O modo petista de informar é insuperável. Já inventaram conselhos, paisagens campestres e uma falsa entrevista do ministro Gilberto Gil na qual ele se referia ao "fascismo das grandes corporações da mídia". O aparelho do comissário Luiz Gushiken fez mais uma: adulterou (de novo) um texto de discurso do presidente da República.
No último dia 18, numa inauguração em São Paulo, Lula disse: "Se as pessoas querem continuar tendo progresso nas políticas sociais, não têm outro jeito. Dia 3 de outubro é votar na Marta Suplicy para continuar administrando São Paulo".
Deu bolo. O comissariado podia ter retirado o discurso de Lula da página de "íntegras" do sítio do Palácio do Planalto. Seria uma solução torta, mas seria uma solução. Preferiram adulterar o texto, suprimindo o trecho maldito. Foi a solução desonesta destinada a lograr quem consulta (e sustenta) o sistema oficial de divulgação de notícias.
Não é a primeira vez que alteram discursos do presidente. Em março do ano passado a página de discursos de Lula informou que o companheiro dissera o seguinte:
"Napoleão Bonaparte disse: "A China é um gigante adormecido que o dia em que acordar o mundo vai tremer". E a China acordou, e o mundo está, pelo menos, preocupado com o potencial de crescimento da China. Antes de Napoleão Bonaparte ter visitado a China, o hino brasileiro já falava que nós somos um gigante".
Foi mal. Napoleão nunca pôs o pé na China.
Semanas depois, fizeram um peeling no discurso. Lula passou a dizer assim:
"Napoleão Bonaparte fez ecoar uma frase que ficou muito famosa junto aos chineses. Disse ele: "A China é um gigante adormecido. No dia em que a China acordar, o mundo vai tremer". Possivelmente, se ele, na mesma época, tivesse visitado o Brasil, também diria o mesmo".
Lula deveria criar um Conselho de Jornalismo Petista só para "orientar, disciplinar e fiscalizar" as atividades da brigada do comissário Gushiken.

Entre o certo e o errado, ganha o errado
Maravilhas da burocracia nacional. Em 1969 o exilado José Serra pediu um passaporte ao consulado brasileiro em Santiago. À época, o Itamaraty mantinha um infame "fichário de pessoas com registro de atividades nocivas à Segurança Nacional". Negavam passaportes a exilados e até mesmo aos seus filhos.
O cônsul Otávio Guinle deu um passaporte brasileiro a Serra e encrencou-se. Acabou deixando a carreira por conta das pressões que, a seu juízo, sofreu. Requereu indenização pecuniária à Comissão da Anistia e agora bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça: quer ser reintegrado na carreira, no posto de embaixador.
No início do mês, o STJ deu 60 dias de prazo ao ministro Márcio Thomaz Bastos para resolver a questão.
Os burocratas encarregados de decidir essa questão vivem uma sinuca. Outro diplomata, Fernando Fontoura, foi mandado pela ditadura à cata de José Serra para confiscar-lhe o passaporte. No governo de FFHH ele foi nomeado embaixador na República Dominicana.
Fica-se assim numa situação divertida: o funcionário que deu o passaporte a Serra está desde 2002 na fila da burocracia do Ministério da Justiça, mas o que tentou tirá-lo foi nomeado representante do governo do qual Serra era ministro.
Guinle não liberou passaporte por convicção política ou ideológica. Fez isso porque achou que estava no consulado para atender aos cidadãos que fossem pedir documentos.

Tucano malvado
De um tucano capaz de envenenar caixa d'água de orfanato se o seu nome for revelado, ao saber do contrato de locação do PTB acertado com os çábios do Planalto:
- Nós comprávamos deputados. O PT compra partidos.

Fome Mil
Um dos grandes argumentos dos conservadores americanos contra qualquer ajuda aos pobres do Terceiro Mundo é o de que o dinheiro mandado para o andar de baixo acaba no de cima.
Os çábios fizeram uma mudança na política agrícola capaz de fazer sorrir os mais reacionários republicanos. Mexeram no sistema de cálculo do preenchimento da chamada "cota americana" da produção de açúcar do Nordeste.
Trata-se de um incentivo dos Estados Unidos às exportações de áreas canavieiras pobres. Coisa do tempo do cancelamento dos negócios com Cuba. O Nordeste produz quatro milhões de toneladas/ano, e sua cota é de 120 mil toneladas.
O governo brasileiro decidiu que os usineiros de álcool que refinam açúcar devem entrar na partilha dessa cota, numa proporção determinada pela sua produção total. Assim, um produtor que processa 1 milhão de toneladas de cana e destina 900 mil para o álcool e 100 mil para a cana, fica com 3.600 toneladas de açúcar da cota americana. Outro plantador, que mói as mesmas 100 mil toneladas só para produzir açúcar, fica com 3.600 toneladas da cota, dez vezes menos que o grandão. Se um pequeno usineiro trabalha só com álcool, nada feito. Está fora do negócio.
Essas duas anomalias ajudam a escoar boa parte da produção de açúcar das famílias carentes de usineiros milionários alagoanos.

Goteira
O PT Federal está com uma preocupação: pressentiu que quase tudo o que contou ao PTB estará na imprensa. O mais surpreendente é que não desconfiassem de que isso aconteceria.

Boca de cofre
Durante o governo do marechal Castello Branco desconfiou-se que um dos seus colaboradores passava informações para o colunista Ibrahim Sued. Na hora do almoço, com jeito de quem não quer nada, um major contou que o presidente havia comprado um bilhete de loteria. Revelou até o número, fácil de memorizar. Ele havia advertido todos os comensais, menos um (José Carlos Nogueira Diniz), de que a fofoca era mentirosa. No dia seguinte a história e o número do bilhete estavam na coluna do Ibrahim.
José Carlos era assessor da Casa Civil e sobrinho do genro de Castello. Perdeu o emprego.
Há algum tempo o comissário José Dirceu contou a um conhecedor das coisas de Brasília que ganhara uma miniadega para refrigerar vinhos, "cheia". O cidadão, que caminha pelas paredes para não deixar rastro nos carpetes, não contou a história nem à mulher.


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