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biblioteca FOLHA
Coleção publica no próximo domingo o principal romance do escritor americano Scott Fitzgerald, lançado em 1925
"Gatsby" fica entre futilidade e tragédia
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"O Grande Gatsby", de F. Scott
Fitzgerald, escrito há mais de 70
anos, é desses livros raros que, ao
mesmo tempo em que sintetizam
o imaginário marcante de uma
era, no caso os anos 1920 de uns
Estados Unidos pujantes, otimistas e ricos, mantêm teimosamente
a sua vitalidade. É como a representação do desejo de um "orgiástico futuro", nas palavras do narrador, que ano após ano insiste
em se afastar de nós.
O argumento do romance parece simples: Jay Gatsby, um misterioso milionário, dá festas suntuosas para uma horda de visitantes
que vive desembarcando alegremente em sua casa, em Long Island, Nova York, mesmo sem saber direito quem ele é. De sua janela, Gatsby contempla do outro
lado da baía as luzes da residência
de seu amor de juventude, Daisy,
agora casada com um tosco mas
rico Tom Buchanan, e que ele pretende reconquistar.
É um mundo de pesada futilidade, sem eixo de valor além da "angustiante percepção do dinheiro".
E os valores, quando transparecem, revelam um subterrâneo sinistro: "Compete a nós, que pertencemos à raça dominante, estar
atentos; do contrário, outras raças
dominarão o mundo", diz o marido de Daisy. E completa: "E o que
é mais, produzimos todas as coisas que fazem a civilização".
Entre essas coisas civilizadas, está a amante de Tom, Myrtle Wilson, mulher de um pobre garagista que será um dos pivôs do romance; ou a própria Daisy, que
num momento dirá, com "eletrizante desdém": "Santo Deus, como sou sofisticada!". Ou ainda o
automóvel de Gatsby, "cintilante
de metais" que refletiam "uma
dúzia de sóis".
A história de Gatsby, afinal um
pé-rapado que enriquece pela via
do crime, subitamente se transforma em tragédia, mas, tiradas as
máscaras, é como se a tragédia
fosse o tempo todo a verdadeira
natureza daquele mundo -como
se houvesse uma incompatibilidade de alma entre o projeto americano de felicidade e o material angustiantemente precário de que
dispõem para construí-lo.
Um dos segredos literários desse
belo romance está na escolha do
narrador e do ponto de vista: toda
a história é contada por um espectador que não participa propriamente do que acontece. O pobretão Nick Carraway, que por acaso
aluga uma casinha modesta ao lado da mansão de Gatsby e que é
tratado por todo mundo com
uma generosidade condescendente, vai contando os fatos ainda
sem compreendê-los perfeitamente. Ele se define "como um
sujeito de raciocínio lento e cheio
de regras interiores que agem como freios". Declarando-se ele próprio uma das poucas "criaturas
honestas" que jamais conheceu,
Nick não perde sua referência moral, tirada não dos catecismos,
mas de uma resistência instintiva
a se entregar aos fascínios de Nova
York.
Há no livro um sutil (e também
clássico) contraste entre uma certa "solidez da província" e aquele
mundo novo em que tudo se dissolve no ar, mesmo os enormes
olhos desbotados do "Dr. T. J. Eckleburg" de um outdoor em ruínas, que como um deus o contemplava diariamente no caminho
para a cidade. É o instinto de Nick,
e não a conveniência, por exemplo, que o leva a dizer sinceramente ao contrabandista Gatsby depois que seu plano de reconquista
fracassa: "Você é melhor que todos eles!".
A linguagem de Nick não se entrega às certezas, à ênfase, ou à pose do estilo. Há uma insegurança
afetiva que acompanha o seu
olhar e tateia o mundo em volta,
insegurança presente também em
sua relação com Jordan Baker,
amiga de Daisy, "incuravelmente
desonesta", que liga os dois mundos e que ao longo do livro como
que propõe ao narrador uma escolha, não exatamente de uma
mulher, mas de um valor.
A sutil ironia da narração -são
deliciosas as descrições das festas,
e algumas enumerações de convidados parodiam uma espécie de
genealogia bíblica dos novos ricos- sempre deixa uma margem
de espanto e de encantamento pelo mesmo mundo que recusa, e é
essa margem ambígua que garante empatia ao texto.
Em "O Grande Gatsby", tudo
nos parece familiar e contemporâneo -um início de século em rápida e bruta mutação, depois de
um período de relativa estabilidade e consolidação de valores; e a
mudança é tão súbita que, como
Nick Carraway, não conseguimos
mais nos reconhecer em nada que
vemos em torno.
Cristovão Tezza é escritor, autor, entre
outros, dos romances "A Suavidade do
Vento" e "Breve Espaço Entre Cor e Sombra", todos pela Editora Rocco
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