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JANIO DE FREITAS
Abalos em série
Coincidências, meras ou
não, existem. Se não forem
apenas isso, para prová-lo são necessárias, muitas vezes, outras
coincidências. Ou, pelo menos, algum tempo e boa dose de sorte.
Nada disso houve ainda em relação aos abalos impostos à disputa
para a Presidência. Mas a sequência de fatos coincidentes em
numerosos aspectos tem eloquência própria.
A série começa (ao que se sabe
até agora) com a original integração de um delegado da Polícia Federal na assessoria direta do ministro da Saúde, então, José Serra.
O questionamento da originalidade teve como explicação a necessidade de investigar as práticas
de certos laboratórios. Em se tratando de ilegalidades, sua verificação disporia do âmbito propriamente policial, como determina a lei e sempre ocorreu. Se irregularidades de ordem farmacêutica, para delas se ocupar há,
no Ministério, a Vigilância Sanitária, até elevada a agência nacional.
No rescaldo da exclusão de Roseana Sarney da disputa presidencial, revelou-se a atividade,
por contratação do Ministério da
Saúde, de um coronel do SNI e
sua empresa especializados em
escuta clandestina de telefones.
As explicações para a contratação
não resistiram ao mais simples
exame: eram só mentiras. Entrevistas do próprio coronel evidenciaram o propósito mentiroso das
explicações oficiais. E, nesses casos, só há um motivo para a mentira: a verdade é inconfessável.
Mais escandaloso do que o episódio de São Luís, em si, é que não
tenha levado a inquérito algum
sobre o que e como se passou ali.
Só isso já denuncia a natureza do
episódio. Consumado por delegados da Polícia Federal com práticas anormais, umas, e outras ilegais. Os Sarney, conhecedores da
face interna do episódio, logo concluíram que os policiais federais
valeram-se de escuta clandestina
de telefones, inclusive do palácio
de governo.
A casa que a PM maranhense
estourou pouco mais tarde, sendo
acusada pela PF de haver exposto
publicamente um núcleo de investigação de narcotráfico, era
mesmo uma central de escuta telefônica clandestina. Nada chegou ao Judiciário que resultasse
de investigações de narcotráfico
por aqueles policiais. E outra vez
as mentiras em abundância. De
cima a baixo:
O então ministro da Justiça,
Aloysio Nunes Ferreira: "Estava
informado [do que se passaria em
São Luís". Não comuniquei ao
presidente porque não quis e não
era necessário".
O então diretor da Polícia Federal, Agílio Monteiro Filho, depondo em comissão do Senado: "O
ministro não estava informado
da operação". O senador Jefferson
Péres estranha, e insiste, falando
quase sílaba por sílaba: "O senhor
está dizendo que o ministro não
sabia?" Agílio, enfático: "Não sabia".
Quando não se pode acreditar
no ministro da Justiça e no diretor
da Polícia Federal, por não saber
qual é o (mais?) mentiroso, não
há o que surpreender ainda no
governo. Ou no país mesmo. E
não surpreendeu: até os jornais
explicitamente governistas publicaram a convicção de que outros
candidatos oposicionistas, em especial Luiz Inácio Lula da Silva,
logo teriam os seus dias de vítimas.
Tal como em São Luís, o pretexto do narcotráfico foi utilizado
pela Polícia Federal para escutas
clandestinas de mais de 40 telefones ligados à administração do
PT em Santo André, sob a cobertura de investigar a morte do prefeito Celso Daniel. A Polícia Federal não pode justificar-se nem ao
menos com uma pequena colaboração: o que está dito sobre o assassinato foi apurado só pela polícia paulista. E nem sobre as acusações de propinas naquela prefeitura a Polícia Federal contribuiu com alguma apuração. Seus
fins eram outros.
Em relação a esses fins, não faltou com a colaboração, involuntária embora: a partir dali, escapou o conhecimento de que Lula
da Silva estava sob investigação
havia 19 meses, de novembro de
2000 até quarta-feira passada. Investigação clandestina, porque
sem o inquérito exigido pela legislação. Partida de suposta denúncia de falso ex-prefeito. E instaurada por ações coincidentes de
delegados da Polícia Federal ocupados, em Brasília, para todos os
efeitos oficiais, com diferentes tarefas em diferentes instâncias.
Diante de tanta coincidência de
modos, personagens e sentido dos
efeitos, vontade não basta para
descrer da existência de uma trama contra a legitimidade da disputa eleitoral (sem falar nas contribuições dadas pelo Tribunal
Superior Eleitoral e em seus conselhos e decisões no fundo da madrugada).
Eric Ambler, um dos menos citados e por certo o melhor dos autores de romances de investigação, vários com temas de política,
adotou e citou muito este princípio: nos crimes e demais atos ilegais em torno de políticos, o que
menos interessa é quem os praticou; os interessados, sim, são o
que importa, para se chegar à verdade dos fatos e dos homens. É, de
fato, um princípio lúcido e útil.
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