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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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NADA SE CRIA

Iniciativa do ex-presidente foi alvo de uma série de denúncias e críticas

Lula retoma programa do leite lançado por Sarney

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

"O companheiro Sarney tinha razão", comenta o ministro José Graziano (Segurança Alimentar e Combate à Fome) a poucos dias de retomar a distribuição de leite a famílias pobres, marca registrada da política social do governo de José Sarney (85-90), atual presidente do Senado e aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A partir de dezembro, não apenas crianças, mas gestantes e mães que amamentam receberão diariamente até dois litros de leite por família com renda inferior a meio salário mínimo por pessoa. O programa foi negociado com os governos de dez Estados do semi-árido, e cinco deles -Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Ceará- estão prontos para começar já a distribuição. A meta, segundo Graziano, é alcançar a marca de um milhão de litros por dia até o final de 2004.
Os saquinhos de leite, a serem distribuídos diretamente às famílias cadastradas (e não mais por meio de tíquetes, como no governo Sarney), levarão o logotipo do programa Fome Zero. "Em algum lugar visível", frisa Graziano, imaginando que a embalagem expressará uma provável "disputa política em torno da paternidade do programa".
O governo federal vai investir na distribuição do leite produzido por pequenos produtores R$ 250 milhões por ano, 62,5% do que a pasta da Segurança Alimentar terá em 2004 depois do pagamento dos funcionários e demais contas obrigatórias. Os Estados e futuramente algumas prefeituras de cidades maiores bancarão parte dos custos.
O ministro diz que tomou cuidados para evitar o uso político da distribuição do leite no ano em que haverá eleições nos municípios. As prefeituras ficarão responsáveis pelo cadastramento das famílias e dos produtores de leite, sob acompanhamento dos comitês gestores do programa nas cidades, com representantes do governo e da sociedade. Questionado se o programa nasce "blindado" contra esse tipo de exploração, o ministro responde: "Nós fizemos o possível, tomamos todas as precauções para assegurar transparência".
O novo programa do leite será lançado quase 13 anos depois de o similar de Sarney desaparecer, já no início do governo Collor (90-92), alvo de denúncias de fraudes, tráfico de influência, corrupção e desvio de recursos. No seu auge, o Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes consumiu o equivalente a 30% da produção nacional de leite. Menos ambiciosa, a versão de Lula não se livrou da polêmica.

"Passo atrás"
São duras as críticas que o programa do leite enfrenta no Conselho Federal de Nutricionistas. A presidente do conselho, Rosane Nascimento, defende que as famílias tenham liberdade de escolher os alimentos que vão consumir e insiste em que o leite não garante os nutrientes de que as crianças precisam, embora seja uma fonte de proteínas.
Rosane não consegue entender a lançamento do programa pouco mais de um mês depois de o Ministério da Saúde suspender a distribuição de leite e óleo como receita básica de combate à desnutrição infantil. O dinheiro do programa reforçou o orçamento do Bolsa-Família, que unifica os programas de transferência de renda do governo federal.
"Retomar a distribuição de leite é um retrocesso. Nutricionalmente não cabe. Só vejo uma justificativa: a mercadológica", avalia a nutricionista, que alerta para o risco de tolerância à lactose (produto contido no leite de vaca).
Para o mercado, o programa é muito bem-vindo. A Associação Brasileira dos Produtores de Leite, a Leite Brasil, defendeu expressamente "a criação de programas sociais de distribuição de leite". O item consta da agenda de trabalho de 2003, conjunto de medidas apresentadas ao governo Lula, um documento disponível no site da associação.
"É evidente que o programa conta com o nosso apoio. Foi uma lástima quando o [ex-presidente Fernando] Collor suspendeu", avalia Jorge Rubez, presidente da Leite Brasil. Embora a meta do programa de Lula represente a terça parte da média obtida pelo programa de Sarney e a produção tenha aumentado desde então, Rubez diz que o aumento do consumo será "significativo".
O presidente da associação calcula que a indústria responsável pela pasteurização e ensacamento do leite ficará com quase metade do valor (pouco mais de R$ 1) que o programa pagará por cada litro do produto. A parte maior do dinheiro, segundo o governo, ficará com pequenos produtores de leite, que produzam até 100 litros e, de preferência, menos de 50 litros por dia.
"É pouco provável que o governo consiga comprar leite apenas de pequenos produtores", pondera Jorge Rubez, questionando um dos pilares do programa.
Apoio maior, só o do próprio senador José Sarney. "Quando decidi apoiar Lula, muito antes da campanha, o único pedido que lhe fiz foi que restaurasse a distribuição de leite. O programa está na memória e na saudade do povo brasileiro", disse o senador peemedebista, renovando o apoio ao presidente.

Negócio
O estímulo à produção de leite aparece nos documentos oficiais como uma das prioridades do novo programa. A resolução publicada na edição do "Diário Oficial" da União de sexta-feira traz o seguinte diagnóstico: quase 70% dos produtores de leite do país produzem até 50 litros por dia, e cerca de 40% deles "estão sendo alijados por não atender às exigências crescentes de escala e tecnologia sanitária impostas pela sofisticação do negócio".
O texto sustenta que o leite é essencial à saúde das crianças. "Dessa forma, o projeto cumpre o papel fundamental de associar à política de segurança alimentar o apoio decisivo à agricultura familiar, em especial à cadeia produtiva do leite", resume.
José Graziano lança mão de recomendações do Ministério da Saúde para defender o aumento do consumo do leite -pelo menos um litro por dia para crianças entre seis meses e dois anos de idade, por exemplo: "É o produto mais completo que existe". O ministro reconhece, no entanto, que o tema é polêmico. Ele mesmo tem alergia ao leite de vaca. "Fui salvo pelo leite de cabra", conta o ministro.
O produto também terá espaço no programa, que pagará 25% a mais pelo leite de cabra, informou. O Fome Zero deverá garantir um aumento de 74% da produção, prevê o ministério.


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