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NADA SE CRIA
Iniciativa do ex-presidente foi alvo de uma série de denúncias e críticas
Lula retoma programa do leite lançado por Sarney
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
"O companheiro Sarney tinha
razão", comenta o ministro José
Graziano (Segurança Alimentar e
Combate à Fome) a poucos dias
de retomar a distribuição de leite
a famílias pobres, marca registrada da política social do governo
de José Sarney (85-90), atual presidente do Senado e aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A partir de dezembro, não apenas crianças, mas gestantes e
mães que amamentam receberão
diariamente até dois litros de leite
por família com renda inferior a
meio salário mínimo por pessoa.
O programa foi negociado com os
governos de dez Estados do semi-árido, e cinco deles -Rio Grande
do Norte, Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Ceará- estão prontos para começar já a distribuição.
A meta, segundo Graziano, é alcançar a marca de um milhão de
litros por dia até o final de 2004.
Os saquinhos de leite, a serem
distribuídos diretamente às famílias cadastradas (e não mais por
meio de tíquetes, como no governo Sarney), levarão o logotipo do
programa Fome Zero. "Em algum
lugar visível", frisa Graziano, imaginando que a embalagem expressará uma provável "disputa
política em torno da paternidade
do programa".
O governo federal vai investir na
distribuição do leite produzido
por pequenos produtores R$ 250
milhões por ano, 62,5% do que a
pasta da Segurança Alimentar terá em 2004 depois do pagamento
dos funcionários e demais contas
obrigatórias. Os Estados e futuramente algumas prefeituras de cidades maiores bancarão parte dos
custos.
O ministro diz que tomou cuidados para evitar o uso político da
distribuição do leite no ano em
que haverá eleições nos municípios. As prefeituras ficarão responsáveis pelo cadastramento
das famílias e dos produtores de
leite, sob acompanhamento dos
comitês gestores do programa
nas cidades, com representantes
do governo e da sociedade. Questionado se o programa nasce
"blindado" contra esse tipo de exploração, o ministro responde:
"Nós fizemos o possível, tomamos todas as precauções para assegurar transparência".
O novo programa do leite será
lançado quase 13 anos depois de o
similar de Sarney desaparecer, já
no início do governo Collor (90-92), alvo de denúncias de fraudes,
tráfico de influência, corrupção e
desvio de recursos. No seu auge, o
Programa Nacional do Leite para
Crianças Carentes consumiu o
equivalente a 30% da produção
nacional de leite. Menos ambiciosa, a versão de Lula não se livrou
da polêmica.
"Passo atrás"
São duras as críticas que o programa do leite enfrenta no Conselho Federal de Nutricionistas. A
presidente do conselho, Rosane
Nascimento, defende que as famílias tenham liberdade de escolher
os alimentos que vão consumir e
insiste em que o leite não garante
os nutrientes de que as crianças
precisam, embora seja uma fonte
de proteínas.
Rosane não consegue entender
a lançamento do programa pouco
mais de um mês depois de o Ministério da Saúde suspender a distribuição de leite e óleo como receita básica de combate à desnutrição infantil. O dinheiro do programa reforçou o orçamento do
Bolsa-Família, que unifica os programas de transferência de renda
do governo federal.
"Retomar a distribuição de leite
é um retrocesso. Nutricionalmente não cabe. Só vejo uma justificativa: a mercadológica", avalia a
nutricionista, que alerta para o
risco de tolerância à lactose (produto contido no leite de vaca).
Para o mercado, o programa é
muito bem-vindo. A Associação
Brasileira dos Produtores de Leite, a Leite Brasil, defendeu expressamente "a criação de programas
sociais de distribuição de leite". O
item consta da agenda de trabalho
de 2003, conjunto de medidas
apresentadas ao governo Lula,
um documento disponível no site
da associação.
"É evidente que o programa
conta com o nosso apoio. Foi uma
lástima quando o [ex-presidente
Fernando] Collor suspendeu",
avalia Jorge Rubez, presidente da
Leite Brasil. Embora a meta do
programa de Lula represente a
terça parte da média obtida pelo
programa de Sarney e a produção
tenha aumentado desde então,
Rubez diz que o aumento do consumo será "significativo".
O presidente da associação calcula que a indústria responsável
pela pasteurização e ensacamento
do leite ficará com quase metade
do valor (pouco mais de R$ 1) que
o programa pagará por cada litro
do produto. A parte maior do dinheiro, segundo o governo, ficará
com pequenos produtores de leite, que produzam até 100 litros e,
de preferência, menos de 50 litros
por dia.
"É pouco provável que o governo consiga comprar leite apenas
de pequenos produtores", pondera Jorge Rubez, questionando um
dos pilares do programa.
Apoio maior, só o do próprio
senador José Sarney. "Quando
decidi apoiar Lula, muito antes da
campanha, o único pedido que
lhe fiz foi que restaurasse a distribuição de leite. O programa está
na memória e na saudade do povo brasileiro", disse o senador
peemedebista, renovando o apoio
ao presidente.
Negócio
O estímulo à produção de leite
aparece nos documentos oficiais
como uma das prioridades do novo programa. A resolução publicada na edição do "Diário Oficial"
da União de sexta-feira traz o seguinte diagnóstico: quase 70%
dos produtores de leite do país
produzem até 50 litros por dia, e
cerca de 40% deles "estão sendo
alijados por não atender às exigências crescentes de escala e tecnologia sanitária impostas pela
sofisticação do negócio".
O texto sustenta que o leite é essencial à saúde das crianças. "Dessa forma, o projeto cumpre o papel fundamental de associar à política de segurança alimentar o
apoio decisivo à agricultura familiar, em especial à cadeia produtiva do leite", resume.
José Graziano lança mão de recomendações do Ministério da
Saúde para defender o aumento
do consumo do leite -pelo menos um litro por dia para crianças
entre seis meses e dois anos de
idade, por exemplo: "É o produto
mais completo que existe". O ministro reconhece, no entanto, que
o tema é polêmico. Ele mesmo
tem alergia ao leite de vaca. "Fui
salvo pelo leite de cabra", conta o
ministro.
O produto também terá espaço
no programa, que pagará 25% a
mais pelo leite de cabra, informou. O Fome Zero deverá garantir um aumento de 74% da produção, prevê o ministério.
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