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Ciência em Dia
A herança de Chagas
Marcelo Leite
colunista da Folha
A biomedicina caminha a passos de cágado, por mais que a genômica tente
fantasiá-la de lebre. Já se passaram 95 anos
desde que Carlos Chagas (1879-1934) encontrou o micróbio Trypanosoma cruzi
nos intestinos do barbeiro, inseto que se
abrigava nas frestas das casas de pau-a-pique dos caboclos de Minas Gerais e transmitia a doença capaz de destruir-lhes lentamente o coração. Quase um século, mas
novos caboclos, em favelas, continuam a
morrer dessa moléstia fora de moda -uns
30 mil a cada ano, só no Brasil. O médico
Antonio Teixeira, porém, trouxe novidades para eles nas páginas do periódico
"Cell" (www.cell.com).
A boa nova não vai salvar a vida de ninguém da noite para o dia, mas coroa o trabalho de uma vida inteira. Hoje com 62
anos, Teixeira intrigou-se com a doença
quatro décadas atrás -tempo similar ao
que ela pode demorar para manifestar-se
naquele um terço de infectados que de fato
adoece. Após perder um paciente chagásico, examinou seu coração ao microscópio
e espantou-se com a ausência dos micróbios e com a profusão de células do sistema
imune (de defesa) do paciente.
Recém-formado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Teixeira elegera como projeto investigar se Chagas poderia
ser uma doença auto-imune, hipótese que
o levaria à Universidade Cornell (EUA).
Hoje na Universidade de Brasília (UnB), o
médico acredita ter descoberto o mecanismo que permite ao T. cruzi inutilizar corações tanto tempo depois da infecção.
Teixeira e sete outros pesquisadores da
UnB descobriram que o micróbio não invade só as células dos doentes, mas também seu genoma, os genes guardados nos
núcleos de suas células. Parte do DNA contido numa estrutura do parasita chamada
cinetoplasto é enxertada no cromossomo
11 do ser humano infectado, como verificou o grupo de Teixeira em 9 de 13 pacientes. O médico acredita que essa seqüência
estranha ao DNA humano, ao ser lida para
a fabricação de proteínas nas células do
chagásico, atrai a atenção de suas células de
defesa, que passam a atacar os tecidos que
abrigam tais substâncias alienígenas.
O trabalho do grupo brasileiro teve destaque em publicações como "Nature",
"Science Now" e "The Scientist". À última
delas disse David Campbell, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que os
dados da UnB "abrem a porta para modos
inteiramente novos de pensar a relação
hospedeiro-parasita, as conseqüências da
infecção crônica e um estilo de vida intracelular".
Teixeira já havia aventado a possibilidade dessa integração de DNA há dez anos,
mas enfrentou ceticismo. Agora a comprovou com as armas em quem todos hoje
acreditam, as da biologia molecular, mas
nem por isso foi fácil. Transcorreu um ano
inteiro, de março de 2003 a março de 2004,
para que a "Cell" e seus revisores aprovassem o artigo. Entre outras exigências, pediram que a presença do DNA estranho fosse
testada em uma dezena de pacientes, além
dos dois casos submetidos de início.
Esse tipo de transferência de DNA entre
organismos não aparentados é chamada
de "horizontal". Comum nas bactérias, pela primeira vez foi comprovada entre eucariotos, os organismos complexos cujas células são dotadas de núcleos. É uma boa
notícia, e não só para chagásicos, que a descoberta tenha sido feita no país.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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