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Micro/Macro
A visão de um padre cosmólogo
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Em 1931, o padre e cosmólogo belga
Georges Lemaître propôs algo bastante ousado: que o Universo surgiu de
um núcleo atômico gigantesco que, ao se
desintegrar, deu origem a espaço, tempo,
radiação e matéria. Lemaître foi o primeiro a dizer que seu modelo era mais
uma sugestão do que uma teoria, quase
que uma visão. Sendo padre, teve também o cuidado de separar a sua ciência
da sua religião. Não atribuía o evento da
desintegração do "átomo primordial"
(assim o chamava) a um ato divino. Segundo Lemaître, "teorias cosmogônicas
[que tratam da origem do Universo] se
propõem a encontrar condições iniciais
simples que possam explicar como o
mundo presente pode ter resultado da
relação natural entre forças conhecidas".
Ele não tentou explicar de onde veio o
átomo primordial, mas as consequências
físicas de sua existência.
O átomo primordial, segundo Lemaître, seria responsável pela matéria e radiação que observamos no Universo. Ele
chegou até a propor a existência de
"raios fósseis", radiações que sobreviveriam até o nosso tempo, fósseis desta era
primordial. Após a 2ª Guerra Mundial, o
cientista russo-americano George Gamow, inspirado pelas idéias de Lemaître
e pelo desenvolvimento da física nuclear,
desenvolveu o modelo que viria a ser conhecido como Big Bang.
Segundo o modelo, o Universo não teria surgido da desintegração de um átomo primordial: a temperatura era tão alta que seria impossível que a matéria se
agregasse em sistemas com mais de uma
partícula, como em núcleos atômicos
(com prótons e nêutrons), átomos (núcleos com elétrons em torno) ou moléculas (conjuntos de átomos).
Ou seja, segundo o Big Bang de Gamow, o estado inicial do Universo seria
simples, uma sopa cósmica de partículas,
principalmente elétrons, prótons, nêutrons e muitos fótons, as partículas da radiação eletromagnética. O interessante é
que o Big Bang também previa a existência de raios fósseis. E, mais interessante
ainda, esses raios fósseis -a radiação
cósmica de fundo- foram encontrados
em 1965, sendo hoje um componente
fundamental do estudo da cosmologia,
fornecendo um retrato da infância cósmica. Para ser mais preciso, um retrato
do Universo 300 mil anos após o Big
Bang, ou seja, há 13,8 bilhões de anos.
Vamos explorar isso com mais detalhes.
Como na maioria das situações em física, estruturas complexas surgem de uma
competição entre forças opostas. Em geral, a estrutura resultante, seja ela um
átomo, uma ponte ou uma estrela, surge
de um equilíbrio entre tendências opostas, equilíbrio que pode ser estável ou
instável. Por exemplo, o núcleo de um
átomo radioativo é instável à emissão de
radiação. Átomos surgem da atração elétrica entre elétrons e prótons, que têm
cargas opostas. Imagine, então, o Universo primordial como uma fornalha,
com prótons e elétrons ziguezagueando
pelo espaço afora, em meio a um número imenso de fótons. Quanto mais alta a
temperatura, mais energéticos os fótons.
Portanto, quando um elétron e um
próton se aproximavam o suficiente para se sentirem atraídos eletricamente, lá
vinham os fótons e "chutavam" (por interação) os elétrons para longe. Como
resultado, enquanto os fótons fossem
mais energéticos do que a atração elétrica entre prótons e elétrons, nem mesmo
átomos de hidrogênio, os mais simples
na natureza, eram formados.
Acontece que, segundo o Big Bang, o
Universo, desde a sua origem, se encontra em expansão. Para o Universo-bebê,
a consequência mais importante da expansão foi a queda rápida de sua temperatura. Com isso, os fótons foram ficando menos energéticos, até o ponto em
que eles já não podiam destruir as ligações entre elétrons e prótons. É possível
prever que isto ocorreu quando o universo tinha em torno de 300 mil anos.
Formaram-se então os primeiros átomos. Mas o que ocorreu com os fótons?
Incapazes de interagir com elétrons,
eles passaram a vagar pelo espaço como
fantasmas. São esses os raios fósseis, a radiação cósmica de fundo, que carregam
os segredos do Universo primordial. Estudando as suas propriedades, cosmólogos obtiveram, entre outros resultados, a
idade do Universo (13,8 bilhões de anos),
a sua geometria (plana), a era em que as
primeiras estrelas nasceram (200 milhões de anos). A visão de Lemaître foi
vindicada, provando que, em ciência, sonhar também é preciso.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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