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Micro/Macro
Inércia e balas de canhão
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Antes da época de Galileu Galilei, no
início do século 17, existia uma
grande confusão com relação ao que seria o movimento natural de um corpo.
Uma gravura feita durante a Idade Média mostra a trajetória de uma bala de canhão. A gravura faz parte de um tratado
de balística, provavelmente para educar
futuros comandantes de artilharia. O canhão estava na parte interior de um castelo protegido por uma grande muralha.
As tropas inimigas estavam do lado de
fora. O objetivo militar era disparar a bala de canhão de modo que ela atingisse as
tropas inimigas. A gravura mostrava a
trajetória "ideal" da bala: ela saía do canhão em uma linha reta, inclinada com
relação ao chão, passava sobre a muralha
e, quando estava bem acima das tropas,
simplesmente caia verticalmente, como
uma pedra jogada do alto de um prédio.
Sempre achei essa gravura incrível. Como seria possível alguém acreditar que a
bala se move desse jeito? Qualquer criança sabe muito bem que, quando se atira
uma pedra para a frente, sua trajetória
descreve um arco, mais precisamente
uma parábola, e não duas linhas retas
formando um triângulo com o chão. Será que o ilustrador nunca havia atirado
uma pedra, ou visto uma catapulta lançar bólidos contra tropas inimigas?
(Aliás, os bólidos incluíam de pedras e
bolas de piche em chamas a vacas, cabras
e até cadáveres putrefatos.)
A resposta é que o ilustrador separava
o que via de como explicava o que via. Na
época, os movimentos eram explicados
pela física aristotélica, que os dividia em
dois tipos, naturais ou forçados. Segundo Aristóteles, o movimento natural dos
objetos era retornar ao seu lugar de origem em linha reta. Portanto, o que era
feito de terra deveria retornar à terra, o
que era feito de água, à água, de ar, ao ar,
e de fogo, ao fogo. O que cai cai em linha
reta, o que sobe (ar e fogo) sobe em linha
reta.
Para impor movimentos que não sejam verticais, deve-se forçar o objeto. Essa é a função do canhão. Quando a quantidade de movimento forçado acaba, a
bala cai em linha reta, seguindo seu movimento natural. O soldado tinha então
de saber como inclinar o canhão de modo que o movimento forçado terminasse
bem acima das tropas. Outro detalhe importante: segundo Aristóteles, quando
mais pesado um objeto, mais rápido ele
cairia, pois maior seria a tendência de retornar ao seu lugar de origem.
O fato de uma bala de canhão não andar em linha reta não significa que a previsão do ilustrador estivesse errada. Se o
soldado soubesse como inclinar o canhão ele acertaria o alvo. Muitas vezes,
explicações que são eficientes podem estar conceitualmente erradas. Quando
Galileu entra em cena, ele destrói as explicações aristotélicas com uma série de
experimentos. No mais famoso, ele deixa
duas balas de canhão caírem do alto da
Torre de Pisa, uma bem mais pesada que
a outra, e mostra que ambas atingem o
chão praticamente ao mesmo tempo. A
hipótese de Aristóteles estava errada: a
gravidade acelera todos os corpos do
mesmo jeito, sem discriminação.
Galileu usou seus experimentos para
mostrar que o movimento dos projéteis,
balas de canhão ou não, pode ser decomposto em duas partes: um movimento
retilíneo com velocidade constante e um
acelerado verticalmente para baixo, também em linha reta. Isso não deixa de ser
meio parecido com a ilustração da Idade
Média. A grande diferença é que Galileu
mostrou que, quando os dois movimentos são combinados, o projétil descreve
uma parábola.
Ele também entendeu algo muito profundo com relação ao movimento dos
objetos: na ausência de distúrbios externos, um objeto movendo-se em linha reta com velocidade constante continuará
nesse movimento indefinidamente. É a
semente do conceito de inércia. Pense
em um patinador no gelo. Se não houvesse atrito entre os patins e o gelo, o patinador continuaria seu movimento para
sempre.
O que faltava a Galileu eram os conceitos de massa e força, que vieram com
Isaac Newton: massa é uma medida da
inércia de um corpo, sua tendência a
manter o movimento na ausência de forças externas. Curioso que Newton nasceu em 1642, o ano que Galileu morreu,
como se a lei da inércia pudesse também
ser aplicada ao seu próprio desenvolvimento.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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