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Ciência em Dia
Efeito VLS
Marcelo Leite
editor de Ciência
Faz mais de 200 anos que Immanuel
Kant ensinou ao mundo o princípio
da publicidade, segundo o qual todo ato
de governo que necessite de segredo para
se realizar é contrário à moralidade pública, mas muitos funcionários públicos
brasileiros -em particular nalguns setores dos estamentos militar e diplomático, em que a noção de sigilo se confunde
com a cultura da corporação- ainda carecem de aprender essa lição básica.
Decerto há, e deve haver, exceções ao
princípio -como situações de guerra,
ou talvez umas poucas ameaças imagináveis à segurança nacional. Nesses casos, o motivo do sigilo tem de ser regulamentado e demonstrado, e não ficar ao
arbítrio do funcionário em questão.
Não há razão à vista que justifique enquadrar o incêndio do terceiro protótipo
do foguete VLS (Veículo Lançador de Satélites) entre tais exceções. O programa
espacial brasileiro é pelo menos parcialmente civil, sob a égide de uma repartição civil (a AEB, Agência Espacial Brasileira, ligada ao Ministério da Ciência e
Tecnologia), assim como eram civis os 21
funcionários que morreram no acidente
de 22 de agosto de 2003. Em teoria, pelo
menos, o Ministério da Defesa representa a decisão da sociedade e do Estado de
pôr as corporações militares definitivamente sob comando e controle civis.
Esse ministério dá, no entanto, seguidas demonstrações de que parece acreditar no oposto do princípio civil da publicidade, ao menos no que se refere à investigação do acidente. Talvez pelo fato
de o VLS ser projetado e construído pelo
parceiro militar do programa espacial (o
IAE, Instituto de Aeronáutica e Espaço) e
de o foguete poder ser adaptado para
usos bélicos, nesses quase seis meses de
investigação tudo foi cercado de segredo.
Na sua última manifestação de predileção desmesurada pela auto-suficiência, o
Ministério da Defesa fez distribuir à imprensa um comunicado que daria comichões em Kant (se é que ele algum dia foi
capaz disso), sob o título "Esclarecimento a Propósito de Notícias Relacionadas
ao Acidente com o VLS":
"Com relação a reportagens veiculadas
sobre o acidente com o VLS, em Alcântara, o Ministério da Defesa reitera (já que
vem informando normalmente aos jornalistas interessados) que as notícias divulgadas até o momento tomam por base informações especulativas. A garantia
da informação precisa e não parcial virá
com o texto final do relatório da comissão que investiga o acidente e esse relatório ainda não foi concluído.
"Ou seja, a título de bem informar, esclareça-se:
"- Não há previsão de data da divulgação do relatório sobre o acidente de Alcântara;
"- A Comissão que investiga o acidente
vem trabalhando árdua, mas normalmente, no sentido de oferecer, tão logo
possível, o relatório final;
"- Assim que houver uma data quanto
à divulgação do texto final e oficial, o Ministério da Defesa informará aos órgãos
de imprensa;
"- O Governo tem todo interesse em
prestar esses esclarecimentos à sociedade e com inteira transparência."
Em bom português: fazemos o que
bem entendemos, na hora em que bem
entendemos, e daremos satisfações ao
público se assim bem entendermos e no
momento em que bem entendermos
conveniente. Em nome da transparência, oferecemos cortina de fumaça. E
chamamos de "especulação" as tentativas de descobrir e entender as dificuldades técnicas e disputas entre grupos que
já levaram a várias prorrogações dos trabalhos da comissão de investigação.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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