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Micro/Macro
A realidade dual
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Aristóteles, em seu cosmo centrado
na Terra, dividiu a realidade física
em duas partes: abaixo da Lua e da Lua
para cima. Abaixo da Lua, tudo era composto de quatro elementos -terra, água,
ar e fogo. Esse era o mundo das transformações e mudanças. Da Lua para cima,
tudo era feito de uma quinta substância,
ou essência, o éter. O éter, supôs Aristóteles, era imutável, eterno.
Essa divisão do mundo persistiu até
que, na Renascença, Copérnico, Galileu e
Kepler defenderam que o Sol, e não a
Terra, era o centro do cosmo. A transição
se completou com a teoria da gravitação
universal de Newton, que mostrou que a
mesma lei da gravidade operava na Terra
e no céu: assim na Terra como no céu,
versão científica. A unificação de Newton suplantou a dualidade aristotélica. E
assim tem sido na história da física, dualismos sendo suplantados por teorias
mais avançadas.
No início do século 20, um outro dualismo assaltou a física e, portanto, a explicação da realidade em que vivemos.
(Leitores podem discordar de que a física
explique a realidade em que vivemos.
Refiro-me apenas à realidade física do
mundo, do espaço e do tempo e das interações entre objetos inanimados.) Uma
nova teoria, a mecânica quântica, foi
proposta, quase que forçadamente, para
explicar o bizarro comportamento dos
átomos e das moléculas.
As regras que regem o comportamento
dos objetos de dimensões atômicas são
muito diferentes das que regem o comportamento que percebemos no nosso
dia-a-dia. Em particular, o mundo clássico, o mundo das nossas percepções imediatas, é um mundo de certezas e de previsões concretas. Sabemos que, se uma
bola cair de uma certa altura, ela vai se
chocar com o chão após um intervalo de
tempo.
Já o mundo quântico é um mundo de
incertezas e probabilidades: não podemos afirmar ao certo qual caminho um
elétron percorrerá ao viajar de um ponto
a outro do espaço, apenas quais os mais
prováveis.
Será que esse dualismo entre o mundo
clássico e o mundo quântico irá também
desaparecer com o surgimento de uma
nova teoria, como desapareceu o dualismo aristotélico? E que teoria seria essa?
Aqui, as opiniões dos físicos estão divididas. Existe um grupo que afirma que a
transição entre o clássico e o quântico é
contínua e que a teoria quântica é realmente fundamental: o mundo clássico
está contido nela, no limite em que os
objetos são grandes o suficiente.
Caso isso seja verdade, todas as teorias
da física devem ter uma formulação
compatível com o mundo quântico, inclusive a da gravidade. Ou seja, a teoria
que descreve as interações entre as pessoas e a Terra, entre a Terra e o Sol e mesmo a expansão do Universo deve ter
uma formulação quântica, baseada em
probabilidades.
Não vemos esse comportamento
quântico da gravitação porque ele só se
manifesta a distâncias muito pequenas.
Cálculos indicam que essas distâncias
são da ordem de milionésimos de trilionésimos de um núcleo atômico, impossíveis de observar hoje ou em futuro próximo. Céticos dizem que as propriedades
quânticas da gravitação são inobserváveis. Se esse for o caso, o problema fica
complicado: uma teoria física tem de ser
testável para ser aceita.
O outro grupo diz que a realidade é
dual: existe um mundo clássico e um
mundo quântico, e eles são disjuntos.
Não existe razão para tentar uni-los em
uma única descrição. A atração gravitacional entre dois prótons é perfeitamente
desprezível quando comparada com a
repulsão elétrica entre eles. Portanto, a
gravitação não tem um papel relevante
no mundo do muito pequeno e deveria
ser deixada de lado.
O físico Freeman Dyson é partidário
dessa filosofia, conforme afirmou em artigo recente para a "New York Review of
Books" (edição de 13 de maio de 2004).
Essa posição, bastante pragmática, me
parece incompatível com a cosmologia
moderna: se o Universo está hoje em expansão, ele era muito menor no passado.
Em um certo ponto, ele foi tão pequeno
que todas as distâncias eram subatômicas. Como não incluir a gravidade nessa
descrição do cosmo? Parece-me que esse
dualismo também irá cair um dia. Qual
teoria conseguirá tal feito é assunto para
outro domingo.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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