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Micro/Macro
O debate quântico
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Durante as primeiras três décadas do
século 20, o misterioso comportamento dos átomos foi pouco a pouco
sendo revelado por um grupo de físicos
que inclui Einstein, Bohr, Dirac, Schrödinger, Heisenberg, Pauli e muitos outros. Foram 30 anos que abalaram profundamente os alicerces da física, transformando a nossa concepção de mundo.
Os átomos e seus constituintes, elétrons,
prótons e nêutrons, têm propriedades
inteiramente diferentes dos objetos que
vemos no dia-a-dia, como bolas, carros
ou ondas na praia. O mundo quântico,
como veio a ser chamada a realidade em
que essas entidades existem, é um mundo borgiano, exótico e paradoxal.
No nosso mundo, o mundo clássico,
objetos podem viajar continuamente pelo espaço. Planetas orbitam o Sol, pessoas andam nas calçadas (quando há espaço), carros viajam em estradas etc. Já
um elétron, orbitando o núcleo de um
átomo, tem seus movimentos limitados.
A ele são dadas apenas certas órbitas, separadas por distâncias fixas, como se um
átomo fosse uma cebola, feito de órbitas
concêntricas. O elétron "pula" de órbita
em órbita, como nós subimos e descemos escadas. Estranho.
Mesmo essa imagem é já simplificada.
Na verdade, não podemos pensar no
átomo com um minissistema solar, com
o núcleo no centro, feito o Sol, e o elétron
girando à sua volta, como um planeta. O
elétron deve ser interpretado como uma
entidade que pode ter vários padrões de
vibração, feito uma corda de violão que
pode ser tocada de muitas formas, cada
uma dando origem a uma nota diferente.
Cada padrão de vibração do elétron está
relacionado a uma "órbita", ou melhor,
estado, com energia bem definida.
O elétron, portanto, não gira em torno
do núcleo, mas ressoa de formas diferentes, dependendo da energia. Esses padrões vibratórios são os estados quânticos, e os pulos entre as órbitas consistem
em transições entre padrões vibratórios.
De certa forma, o átomo é como um instrumento musical, com apenas algumas
notas possíveis, cada uma correspondendo a um estado ou nível de energia.
Uma consequência direta desse modo
de interpretar o elétron é que fica impossível dizer onde, precisamente, ele está
em um determinado momento. Do mesmo modo, não podemos dizer precisamente qual a posição de uma onda do
mar, apenas sua distribuição pelo espaço. Esta indeterminação intrínseca da
mecânica quântica, a mecânica do mundo atômico, irritou e irrita muita gente.
Talvez "frustrar" seja um verbo melhor, porque no mundo clássico não temos esse problema. Quando queremos
saber onde está um carro, basta olhar para ele, medir a sua distância e determinar
a sua posição. Já com o elétron a coisa fica bem mais complicada. Primeiro, o
átomo é tão pequeno que não podemos
vê-lo como vemos uma bactéria no microscópio. O ato de ver o elétron interfere com a sua posição. É como se soubéssemos de uma barata escondida embaixo do sofá: quando formos cutucá-la para ver onde ela está, ela muda de posição.
No caso do elétron em torno de um
átomo, o ato de ver significa enviar radiação eletromagnética ou outra partícula para interagir com ele. Quando isso
ocorre, o elétron imediatamente escolhe
uma órbita e fica lá. Você pode estar pensando: "Então sabemos onde ele está,
não? Na órbita número dois ou três".
Não. Se você repetir a experiência cem
vezes, vai obter resultados diferentes.
Tudo o que podemos dizer é que o elétron tem uma certa probabilidade de ser
detectado nessa ou naquela órbita. A certeza que existe no mundo clássico desaparece no mundo quântico.
Einstein jamais engoliu isso. Ele achava
que essa incerteza quântica, probabilística, era consequência de nossa ignorância: deve haver uma teoria mais fundamental que pode determinar exatamente
o que vai ocorrer com o elétron, explicando essas probabilidades todas. Bohr
dizia que não: a natureza é intrinsecamente indeterminada, e pronto. Einstein
pode gostar ou não disso.
O debate foi ao laboratório, e teorias diversas, não-probabilísticas, foram testadas. Ganha sempre a indeterminação.
Aparentemente, o mundo quântico é
mesmo paradoxal, um mundo borgiano
em que todas as observações são, em
princípio, possíveis, com probabilidades
diferentes.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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