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Micro/Macro
Como datar a origem da vida
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Imagine observar uma pessoa idosa
durante um tempo sem poder conversar com ela e tentar, a partir dessas observações, reconstruir detalhes de sua vida: onde cresceu, se teve doenças sérias ou filhos, se foi ou é casada etc. Por mais
atento que você seja, certamente apenas
partes da história serão óbvias, aquelas
que deixaram marcas distintas ou outras
pistas. Uma cicatriz, uma aliança no dedo, o jeito de se vestir.
Em várias áreas da ciência a proposta é,
de certa forma, semelhante: não podendo voltar diretamente ao passado, temos
de obter o máximo de informação sobre
o que ocorreu através de pistas indiretas.
Esse é o caso, por exemplo, da paleontologia, que tenta reconstruir as diferentes
formas de vida que existiram na Terra
através de fósseis, ou de partes da geologia, que tenta reconstruir a história da
Terra, a sequência de suas várias transformações físico-químicas e estruturais,
através do estudo da composição mineral de suas várias camadas. De fato, descobertas em paleontologia e em geologia
muitas vezes andam de mãos dadas -e
as crises, também.
Veja o exemplo da extinção dos dinossauros. Apenas na década passada ficou
claro que os dinossauros foram extintos
há 65 milhões de anos, devido a um impacto devastador de um asteróide de
aproximadamente dez quilômetros de
diâmetro sobre a Terra. Paleontólogos
sabiam da extinção relativamente rápida
dos sáurios gigantes, mas apenas quando geólogos descobriram a enorme cratera na península de Yucatán, no México,
o debate foi finalizado. Se essa história é
um exemplo da colaboração entre os
dois grupos (nem sempre amistosa, deve-se dizer), uma nova crise mostra sua
importância: a reconstrução das primeiras formas de vida na Terra.
A infância da Terra foi extremamente
violenta. Durante o seu primeiro bilhão
de anos, ela e os outros planetas do Sistema Solar foram furiosamente bombardeados por inúmeros asteróides e planetóides. A Lua, por exemplo, parece ter sido a sobra de uma colisão entre a jovem
Terra e um planetóide do tamanho de
Marte. Essa fase violenta terminou aproximadamente há 3,7 bilhões de anos. E
não é coincidência que os primeiros sinais de vida também datem dessa época.
Aparentemente, assim que as coisas se
acalmaram por aqui, os primeiros seres
que podemos chamar de vivos apareceram: conjuntos complexos de moléculas
à base de carbono, capazes de se reproduzir. Na Austrália, foram descobertos
restos de colônias de micróbios chamadas de estromatólitos -um dos primeiros testemunhos da vida na Terra, datados em 3,5 bilhões de anos. Em Isua,
Groenlândia, restos com 3,7 bilhões de
anos. E antes disso?
A situação fica muito complicada. Três
bilhões e meio de anos é muito tempo,
mesmo em geologia. Tempo suficiente
para as rochas terem passado por inúmeras transformações, que, infelizmente, destroem e corrompem fósseis de seres que porventura tenham vivido nessa
época ou antes.
Ao procurar sinais da vida que existia
há bilhões de anos, geoquímicos têm de
achar pistas muito discretas, traços infinitesimais de compostos de carbono gravados ainda nas rochas. O problema é
que alguns desses traços podem ser criados por processos inorgânicos, ou seja,
que não envolvem seres vivos ou seu metabolismo. Esse é, aparentemente, o caso
de achados em rochas da Groenlândia,
datados em 3,8 bilhões de anos, ou seja,
ainda no meio do bombardeio primordial. Esses seriam, se provados corretos,
os primeiros sinais de vida na Terra.
Qualquer que seja o veredicto final (as
coisas não vão bem para os defensores
da vida com mais de 3,8 bilhões de anos),
o impressionante é a possibilidade de a
vida ter existido em condições tão extremas. Esse é o aspecto mais importante
do debate, seres vivos sobrevivendo em
ambientes hostis. Nem é necessário voltar 3,8 bilhões de anos, 3,7 bilhões já está
bastante bom, pois a Terra era então um
verdadeiro inferno.
A consequência é óbvia: se formas de
vida existiram aqui em condições tão extremas, devem ter necessariamente existido em outros planetas pela galáxia.
Nesse caso, a curiosidade fica ainda mais
aguçada: que formas de vida serão essas?
A esperança é que elas sejam mais do que
meros micróbios, quem sabe até inteligentes, se questionando, como nós, se
existem outras formas de vida na galáxia.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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