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Micro/Macro
Intriga celeste
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
De todos os encontros entre grandes
personagens da ciência, nenhum é
mais fascinante que o dos astrônomos
Tycho Brahe e Johannes Kepler nos primeiros meses do século 17. Brahe, nobre
dinamarquês, era a antítese do plebeu alemão Kepler. Brahe, tirânico, meticuloso.
Kepler, intenso, brilhante. Porém, um precisava do outro como a caatinga da chuva.
Brahe havia observado o movimento dos
planetas durante décadas e queria comprovar seu sistema cósmico, no qual a Terra era o centro, o Sol orbitava à sua volta e
outros planetas orbitavam o Sol. Brahe sabia que Kepler tinha talento para fazer os
cálculos necessários. Só que o jovem astrônomo era um copernicano ferrenho. Para
Kepler, não havia dúvida que o Sol era o
real centro do cosmo. Após brigas e reconciliações, Brahe morreu, ao que parece devido a uma infecção urinária após uma bebedeira.
Um livro recente, "Intriga Celeste: Johannes Kepler, Tycho Brahe e o Assassinato por Trás de uma das Grandes Descobertas Científicas da História" (Doubleday,
Nova York, 2004), de Joshua e Anne-Lee
Gilder, usa estudos forenses para chegar a
uma conclusão chocante: Tycho Brahe foi
envenenado e o assassino era Kepler!
O livro chegou a mim pelo editor do
"Jornal de História da Astronomia", que
pediu que eu o resenhasse. A premissa dos
autores baseia-se em três partes. Primeiro,
que Brahe ingeriu uma dose elevada de
mercúrio 13 horas antes de morrer. Segundo, que o mercúrio foi dado a ele para matá-lo. Terceiro, que o assassino foi Kepler,
desesperado para pôr as mãos nos dados
astronômicos de Brahe. A primeira parte
parece estar correta. A segunda é possível,
mas improvável. A terceira é absurda.
Existem muitos modos de contar uma
história, especialmente quando os personagens estão todos mortos e não podem se
defender de acusações. A versão dos Gilder
é no mínimo tendenciosa, pintando Brahe
como um nobre magnânimo e honesto e
Kepler como um neurótico profundamente egoísta. Ambas são distorções.
Jan Pallon, da Universidade de Lund, na
Suécia, usou uma técnica chamada emissão de raios X induzida por partículas para
concluir que Brahe ingeriu mercúrio 13
horas antes de sua morte. Para isso, Pallon
analisou uma amostra do célebre e longo
bigode de Brahe obtida na exumação de
seu corpo, em 1901. A técnica identifica as
substâncias presentes na amostra. Como
cabelos crescem, analisando partes distintas dos fios Pallon pôde reconstruir o que
circulava pela corrente sangüínea de Brahe
pouco antes da morte. Ele ingeriu mesmo
uma alta quantidade de mercúrio. O que
não significa que a dose houvesse sido letal,
algo que o teste não pôde comprovar. Ainda assim, a primeira parte está confirmada.
Mas será que ele foi assassinado? Brahe,
como muitos outros cientistas da época, lidava rotineiramente com mercúrio em seu
laboratório alquímico. Ele tinha até uma
receita para males da bexiga baseada em
sulfato mercúrico. Será que ele tomou o remédio e errou, em seu estupor doentio, a
dosagem? Os autores dizem que não. Segundo eles, Brahe, extremamente meticuloso, não cometeria um erro desses. Se ele
não errou, será que ingeriu uma dose propositadamente alta e se suicidou? A hipótese é tão válida quanto a de assassinato.
Brahe andava deprimido desde a morte
de seu irmão mais novo. Estava enfrentando sérias dificuldades financeiras na corte
de Rodolfo 2º, que não pagava seu salário.
Disputas profissionais corroíam a sua saúde. E, muito provavelmente, Brahe sabia
que seu sistema cósmico estava errado,
mesmo que não o admitisse a Kepler.
Ainda que Brahe tenha sido assassinado,
não há nada que indique que Kepler fosse
capaz de algo tão horrendo. Ser intenso e
ambicioso não faz de alguém assassino. Jamais saberemos ao certo. Kepler deve ser
deixado em paz e ter sua obra celebrada como um dos grandes feitos da humanidade.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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