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PLANO DIRETOR
Ex-orientador de doutorado do relator Nabil Bonduki diz que paga para ver projeto aprovado sair do papel
Planejar a cidade é "mito", diz urbanista
Luciana Cavalcanti/Folha Imagem
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O urbanista Flávio Villaça, para quem os planos diretores servem para defender as minorias ricas |
DA REPORTAGEM LOCAL
O professor da FAU-USP Flávio
Villaça é um urbanista "sui generis" -despreza planos diretores.
Porém, para ele, "sui generis" é
acreditar que uma lei aprovada
pela Câmara Municipal tenha o
poder de planejar a cidade. "Só no
Brasil se pensa assim", diz um dos
poucos brasileiros a obter o título
de Master of City Planning do
Georgia Institute of Technology,
além do pós-doutorado em Berkeley, Califórnia, Estados Unidos.
Villaça foi também orientador
da tese de doutorado em urbanismo do vereador Nabil Bonduki
(PT), autor do substitutivo ao Plano Diretor aprovado pela Câmara
no dia 23. "Foi um aluno brilhante." A prerrogativa, no entanto,
não reduz seu ceticismo. "Pago
para ver essas propostas saírem
do papel." Leia, a seguir, trechos
da entrevista concedida à Folha:
Folha - Que avaliação o sr. faz do
processo que culminou na aprovação do Plano Diretor na Câmara?
Flávio Villaça - O processo representa um avanço, claro. Os únicos
planos que despertaram um debate politizado foram o da [ex-prefeita] Luiza Erundina [1989-92] e esse. O da Erundina foi à Câmara, mas não a plenário.
Folha - O plano aprovado é muito
diferente do de Erundina?
Villaça - Muito diferente. Eu
acho que o debate tornou o plano
atual mais colado à realidade. A
primeira versão apresentada pela
Secretaria Municipal do Planejamento era só generalidades, como
a maioria dos planos diretores feitos no Brasil. Por isso é que não
saem da gaveta.
Folha - Segundo a maioria dos urbanistas, São Paulo é um caos porque não foi planejada. O plano serviria para planejá-la.
Villaça - Essa idéia de que plano
diretor é um instrumento fundamental para guiar o crescimento
da cidade, que é um instrumento
global, essa tese de identificar o
plano com o interesse público, isso tudo é a mitologia que se criou
em torno do plano. E se criou para
esconder o fato de o que está se
cuidando, na verdade, é do interesse de uma minoria.
Folha - Não há exemplos de países que planejaram cidades por
meio de planos diretores?
Villaça - Vamos aprofundar a
discussão. Como em qualquer aspecto da sociedade brasileira, você não pode se desvincular do fato
de que somos uma sociedade injusta, na qual a grande maioria
não participa. O Brasil não é só o
país de mais alto desnível de renda do mundo, mas também de
mais alto desnível político do
mundo. Em outros países, não se
fantasia plano diretor como no
Brasil. Plano com essa conotação
que se tenta dar no urbanismo
brasileiro, de que é global, de que
envolve até segurança pública,
saúde, educação, isso não existe
fora da América Latina.
Folha - Como europeus e norte-americanos fazem seus planos?
Villaça - Eles têm planos de
obras, feitos pelas autoridades
que são efetivamente responsáveis pelas obras. E têm plano de
zoneamento. Isso, sim, toda cidade do mundo tem, um plano de
controle de uso do solo, que é só
isso. Aqui, não. O controle de uso
do solo, que é uma coisa que existe há cem anos em São Paulo, é
muito menos destacado, menos
valorizado, do que o plano.
Folha - Mas quando há debate sobre plano diretor, o setor imobiliário e as associações de bairro centram o debate no zoneamento.
Villaça - Por isso eu defendo que
o plano é uma mitologia. Porque
diz que vai cuidar dos interesses
globais da cidade só no discurso.
Há até urbanistas que acham que
o plano deve incluir tudo aquilo
que for do interesse da cidade, seja ou não da alçada municipal.
Por exemplo: metrô para Guarulhos deve fazer parte do plano.
Plano diretor passa a ser um receptáculo das boas idéias, que é
uma concepção completamente
sui generis. É um manual do que é
bom para a cidade, independentemente de quanto vai custar, a
quem cabe executar. São generalidades que jamais sairão do papel.
Folha - O que o plano deveria ter
para organizar a cidade?
Villaça - Isso já é ter uma ambição muito grande. Você achar que
um plano para o Estado ou para o
país trará mudanças é muito
complicado, principalmente se
estivermos falando de um plano
que extrapole um mandato.
É outra mitologia. Os planos
mudam muito. Quem tem plano
a longo prazo? O Metrô tem. E
daí? Ele muda. A linha da avenida
Paulista era para ligar a Vila Prudente à Vila Madalena. Só que o
trecho da Vila Prudente sumiu.
No último plano que vi, foi para o
Sacomã.
Outra coisa é a Lei de Zoneamento, que não tem prazo para
vigorar. A primeira Lei de Zoneamento global foi aprovada em
1972. De lá para cá, o que ela já foi
alterada...
Folha - As mudanças pontuais no
zoneamento feitas agora não são
novidade?
Villaça - De jeito nenhum.
Folha - A Lei de Zoneamento sempre foi alterada pontualmente?
Villaça - São os conflitos de interesses. O zoneamento, aliás, só lida com os conflitos de vizinhança
e com valor de imóvel. Agora, isso
só acontece aqui, na zona sudoeste, nos bairros de classe média e
alta. Na zona leste, o que houve de
mudança de zoneamento ao longo dos últimos 30 anos é desprezível. Nunca teve Gabriel Monteiro
da Silva na zona leste.
Folha - Por quê?
Villaça - Porque lá não tem qualidade de vida a ser preservada e
nem conflito de vizinho. Se o cara
tiver uma oficina mecânica do lado da casa dele, pode ser até que a
valorize. Ele não vai achar ruim.
Folha - Esse perfil de conflito entre ricos não afasta outras parcelas
da sociedade do debate do plano?
Villaça - Mas é sempre isso o que
acontece, e não só no Plano Diretor, na Lei de Zoneamento também. Outro dia, na rádio CBN, a
[urbanista] Raquel Rolnik citou
uma estatística de que 70% da população de São Paulo não sabe o
que é zoneamento. E por quê? O
zoneamento não tem nada a dizer
para eles, não contribui para a
qualidade de vida deles, não afeta
o valor dos imóveis. Os bairros de
classe média e alta são afetados.
Folha - É possível planejar a cidade sem plano diretor?
Villaça - Se eu estou falando que
São Paulo praticamente nunca teve plano, e não se diga que a cidade tem problemas por isso...
Folha - Mas muitas pessoas dizem
o contrário, que São Paulo é um
caos porque nunca foi planejada.
Villaça - Mas o que é uma cidade
planejada? Brasília é planejada?
Folha - Saiu da prancheta.
Villaça - Você sabe que dois terços da população de Brasília mora
fora do plano piloto, em área igual
a qualquer outra cidade brasileira
ou pior? Você sabe que a parte
planejada de Belo Horizonte abriga um décimo da população da cidade?
Essa é outra mitologia, essa história de planejar. Só vale para os
primeiros dez, 20 anos de vida da
cidade. Washington [EUA], tirando o miolo, planejado há 200
anos, é igualzinha a qualquer outra cidade americana.
(SÉRGIO DURAN)
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