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SP 450
Dois italianos que se tornaram paulistanos representam os extremos da elogiada gastronomia de São Paulo, a popular e a de luxo
A conquista da cidade pela boca
GIOVANNI BRUNO,67 Veio de Casalbuono, perto de Salerno, sul da Itália, em 1950, com 15 anos, para trabalhar de lavador de pratos no Gigetto, onde ficaria pelos 17 anos seguintes. Ajudou a criar a chamada cozinha cantineira de São Paulo. Hoje, cuida de seu Il Nuovo Sogno di Anarello
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
São Paulo, 1954. Enquanto a cidade se organiza para comemorar
seus 400 anos, um dedicado garçom se preocupa com coisa mais
importante: atender a um cliente,
que acaba de voltar de Roma e está desejoso de um prato visto por
lá, que descreve em linhas gerais.
O cenário é o Gigetto, mítico
restaurante paulistano, inaugurado na rua Nestor Pestana em 1939
e ainda hoje em atividade na rua
Avanhandava, que foi reduto da
intelligentsia dos anos 50 e 60 e
cuidou de fazer a transição culinária das cantinas do Brás do começo do século passado para o que
viria a ser chamado mais tarde de
cozinha cantineira paulistana.
O garçom, de média estatura,
gestos largos e teatrais, olhos pretos e apertados e 19 anos, entra na
cozinha e sai de lá, 15 minutos depois, com uma pasta recheada de
carne bovina e mortadela e banhada por molho branco, ervilha,
presunto cozido e gratinada com
parmesão. Estava inventado o capelete à romanesca.
O autor é Giovanni Bruno, ainda hoje na ativa, à frente de seu Il
Nuovo Sogno di Anarello, na Vila
Mariana. O italiano de Casalbuono, sul do país, deixou de ser garçom em 1967, mas passou os últimos 53 anos servindo. "Se você
tem mais de 50 anos e mora em
São Paulo, é meu filho, porque direta ou indiretamente eu já lhe
servi um prato de comida."
Talvez só haja um pouco de exagero na frase. Realmente, desde
que começou no restaurante do
centro, descascando batatas e lavando pratos, em 1950, um dia
após desembarcar no porto de
Santos do navio que o trouxe de
Nápoles, Giovanni Bruno sempre
esteve no ramo da restauração.
De rico para pobres
Primeiro, como funcionário do
Gigetto por 17 anos, onde ganhou
fama como "garçom dos duros",
como conta Roberto Freire em
sua biografia, "Eu É Um Outro"
(Maianga, 2003). "Eu usava a gorjeta dos ricos para completar a
conta dos pobres, geralmente artistas e escritores", lembra Giovà,
apelido dado pelos amigos.
Ali, inspirou e treinou nomes
que depois difundiriam em suas
próprias casas a tal cozinha cantineira, gente cujo sobrenome virou sinônimo de pratos generosos, saladas enormes e pastas ultracozidas e com muito molho,
como Pier Luigi Grandi, o Piero,
João Lellis e Sargento.
Reivindica para si a popularização dos molhos brancos e a primeira massa "aos quatro queijos"
servida no Brasil. "Fiz também o
primeiro agnolotti, que havia conhecido em Gênova, aquele com
nozes e passas", afirma.
Depois virou proprietário, numa carreira nem sempre marcada
pelo sucesso. Sua primeira casa,
Cantina do Júlio, durou seis meses de 1967, na rua 13 de Maio,
miolo do Bixiga. Teve de ser demolida para alargamento da rua.
Mas ficou famosa por um artigo
de jornal, que reproduzia a carta
que Giovà havia mandado para
sua mãe, na Itália. A correspondência começava com a frase
"Mamma, ora comando io!" (Mamãe, agora quem manda sou eu!),
em que ele contava que havia pendurado de vez seu paletó branco.
Sua fama saía das paredes
do Gigetto para a grande
mídia. Ele inspiraria pelo
menos uma novela de Benedito Ruy Barbosa ("Vida
Nova") e daria consultoria a
outras duas, entre elas "Terra Nostra". Quase três décadas
depois, a peça de roupa continua
em seu escritório, "para que eu
nunca me esqueça de onde vim".
Um castigo do "irmão fogo"
Sua segunda casa, no ano seguinte, teve sorte parecida. "O irmão fogo", como diz o restaurador, pôs abaixo o Giovanni Bruno
da rua Santo Antônio, também no
Bixiga, seis meses depois de sua
inauguração. O incêndio consumiu o quarteirão.
De lá, com três sócios, assumiu
o Le Arcate da rua Martinho Prado, onde ficaria até 1979. Novo
golpe. Seus parceiros o expulsaram da sociedade. Tentou abrir
um outro restaurante com seu
nome e descobriu que o registro
das palavras Giovanni e Bruno
não lhe pertencia mais.
Nascia assim Il Sogno di Anarello, na rua José Maria Lisboa, nos
Jardins, em 1980 -o nome vem
do apelido dado por Antunes Filho; Anarella era personagem de
Gina Lollobrigida no filme "Pão,
Amor e Fantasia" (1953).
O sonho que virou uma rua
Deu certo, cresceu, foi acrescido
de "Nuovo" no nome e mudou-se
para um lugar maior, numa travessa da Vila Mariana que graças
a uma canetada do amigo e então
prefeito Jânio Quadros (1917-92)
virou rua Il Sogno di Anarello.
Casado há 42 anos, é palmeirense roxo. "Minha primeira lembrança da cidade foi no dia em
que cheguei e vi a comemoração
de um título do Palmeiras nas
ruas." São Paulo, para ele, "é a
gentileza do largo do Arouche,
uma mãe que me tratou como seu
filho caçula, me deu até uma rua".
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