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"Se pichar é impor uma idéia, meu nome cabe", afirma jovem que marcou com tinta duas obras de arte expostas em São Paulo
"Não", pichador da Bienal, diz que também é artista
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Pichadores se arriscam para pintar viaduto sobre Radial Leste |
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Se não fosse pichador, "Não",
21, seria o que muitos artistas de
rua chamam de "boy". Não vive
na periferia, fez faculdade de design (que já largou) e tem dinheiro para algumas das coisas que
deseja.
Num exercício de audácia e de
marketing, ele conseguiu um destaque inédito entre pichadores da
nova geração e passou dos muros
para as páginas dos principais jornais do país ao pichar sua marca
na Bienal de São Paulo, nas instalações dos artistas Jorge Pardo e
Mike Nelson.
Leia, a seguir, trechos de entrevista concedida por Não à Folha.
Folha - Por que pichar a Bienal?
Não - Fui com a minha mina na
abertura da Bienal apreciar umas
artes. Encontrei uma ou duas coisas que poderiam ser chamadas
de arte. O resto era enganação.
Folha - O que é arte para você?
Não - Música é arte, dança é arte.
Mas não tem essa de virar um copo de ponta-cabeça e dizer que é
arte. Isso é enganação. O cara está
chamando a gente de trouxa e pegando o nosso dinheiro.
Folha - Mas a Bienal é gratuita.
Não - É o tipo de dinheiro que
poderia ser investido em coisas
para o público. E não para o pessoal entrar e sair sem entender nada. Uma exposição dessas não
acrescenta nada.
Folha - Qual é a sua relação com a
arte?
Não - Sou artista plástico. Eu lanço o "Não". Meu "pixo" é uma arte de rua. Lá [na Bienal], não pude
trabalhar direito porque tive de
ser rápido, ou teria feito certinho,
com as letras encaixadas no estilo,
uma carinha louca e uma frase para as pessoas entenderem por que
eu estava fazendo aquilo.
Folha - E por que você fez aquilo?
Não - A gente vive numa cidade
que tem 20 milhões de pessoas
[são cerca de 10,7 milhões, segundo o IBGE], e não me identifico
com quase nenhum canto da cidade. Quando vejo o meu nome
ou o nome de pessoas que conheço na rua, isso me traz uma felicidade. Pode ser até um "pixo" de
um desconhecido, que eu fico feliz de ver que alguém passou por
ali e deixou sua marca.
Folha - Que felicidade é essa?
Não - Isso vem desde a época da
arte rupestre. Os caras escreviam
e desenhavam nas cavernas. Isso é
instintivo. Mas na sociedade de
hoje, com suas leis de propriedade, as pessoas se dóem muito por
uma coisa que faz parte da natureza humana.
Folha - As obras pichadas foram
escolhidas ou foi algo ocasional?
Não - Eu queria pichar várias. Na
última Bienal, colei vários adesivos [em que estava] escrito
"Não". Só que não fiz isso pensando em ter destaque. Por que eu
não posso participar da Bienal?
Até curti o trabalho do cara que
eu pichei. Visualmente, a arte dele
[Jorge Pardo] é legal. A cabaninha
é o maior estilo. Mas não escolhi
nada. Foi ali que pude pichar porque ninguém iria me ver. Mas fiz
outras pichações que não acharam naquele dia.
Folha - E a outra obra pichada?
Não - Não entendi essa obra.
Aliás, nem sei se aquilo é uma
obra de arte. O bagulho é tão ruim
que nem dá pra saber se é arte ou
se fazia parte dos bastidores da
Bienal, de um espaço que o público não poderia acessar.
Folha - Você estava protestando?
Não - Não foi a minha intenção.
Se bem que eu fiquei puto quando
cheguei lá e vi aquelas paradas. E
eu não sou um ignorante. Eu estudei. Eu cheguei à faculdade e tudo.
Folha - Você acha que a pichação
é discriminada no Brasil?
Não - Aqui ninguém se interessa.
Fora do Brasil, sim. O governo
aqui é muito burro. Em Nova
York, em 1970, quando começaram a fazer grafites, o governo
norte-americano resolveu tentar
entender o que era aquilo. Financiou documentários e livros sobre
o assunto. E essa produção foi espalhada pelo mundo como uma
cultura dos Estados Unidos. Hoje
em dia, em qualquer lugar do
mundo onde há um grafite, há um
pouco da cultura americana.
Folha - Pardo, o artista, especulou em entrevista à Folha qual a
sua motivação ao pichar. Ele disse:
"não, isso não é um trabalho",
"não, eu não acredito nesse trabalho", "não, eu não entendi esse trabalho" ou "não, eu tive um mau dia
hoje". Ele acertou?
Não - Não. Mas talvez eu tenha
um mau dia todo dia, se a gente
for ver a condição do nosso país. E
isso me motiva a escrever. Ele falou algo que tem a ver: o que eu
queria era a oportunidade de falar
em alguma mídia. A gente fica no
anonimato porque ninguém pára
para entender as nossas letras. A
gente passa anos aprimorando
uma tipologia. Ela vai evoluindo.
A escrita em São Paulo é única.
Folha - Você ficou surpreso com a
repercussão?
Não - Fiquei. Meu telefone não
parou de tocar. E meu pai ficou
bravo comigo. Ele não curtiu.
Achou que eu não tinha o direito
de desrespeitar a obra do cara.
Mas ele foi moralista. Se fosse um
quadro, eu não faria aquilo. E se a
Bienal fosse boa de verdade e fizesse as pessoas enxergarem o
mundo de outra maneira, teria
rendido mais reportagens para o
jornal. Mas faz vários dias que falam do meu "pixo". O que fez as
pessoas enxergarem algo diferente foi eu ter colocado o meu nome
ali. Enquanto isso, o policial matando um cara no morro não rende quatro dias de matéria.
Folha - Disseram que a obra foi
"vandalizada". Para você, pichar é
vandalismo?
Não - Se eu tirasse a utilidade de
alguma coisa quando picho, aí seria vandalismo. Mas se eu só interfiro com uma estética, não
atrapalha nada. Até estou acrescentando algo. Os "pixos" mostram que pessoas vivem ali.
Folha - Há outros jeitos de mostrar pessoas vivendo.
Não - É. Mas o "pixo" mostra
que a vida é intensa. Tem a ver
com o cotidiano, tipo "tô vivo".
Folha - Por que "Não"?
Não - Era um nome bom para
pichar, bastante significativo e
com só três letras. A gente ouve
não a vida inteira. Se pichar é impor uma idéia, meu nome cabe.
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