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GILBERTO DIMENSTEIN
A melhor obra de Marta não tem dono
Nada melhorou tanto na
cidade de São Paulo como a
sua região central, por onde circulam 2 milhões de pessoas por
dia. O bárbaro assassinato dos
moradores de rua é um acidente
de percurso e não deveria simbolizar a tendência do centro.
Pode-se até dizer que persistem
graves problemas e que ainda levará muito tempo até que sejam
resolvidos. Correto. Mas nenhuma outra ação pública apresenta
um modelo administrativo tão
promissor no município como a
revitalização da área central.
Em termos de gerência de políticas públicas, é a mais consistente
obra de que Marta Suplicy participa, mas é uma obra que não
tem "dono". Justamente por isso é
a mais consistente: envolve uma
complexa teia de vários segmentos dos governos municipal, estadual e federal, bem como de empresas estatais e, acima de tudo,
da comunidade.
As ruas estão mais limpas e policiadas. Há menos camelôs devido
a uma ação do Ministério Público, acatada pela prefeitura. Reformaram-se prédios residenciais
e comerciais. Alargaram-se calçadas. Praças e jardins estão mais
conservados com o apoio de empresas privadas.
Há duas semanas, a cidade ganhou um novo Mercado Municipal, capaz de se transformar num
pólo de gastronomia. Na terça-feira, ganhou também mais um
espaço cultural, voltado à dança e
às artes plásticas contemporâneas, num prédio abandonado
em que funcionou, no passado,
um cinema (Olido). A cem metros
dali, o Sesc comprou um enorme
prédio (antiga Mesbla) para fazer
uma unidade com esporte, cultura e lazer.
Graças a esses esforços, somados
à infra-estrutura disponível, a
melhoria se traduz em números:
começam a escassear os imóveis
disponíveis, pois a região vem
atraindo moradores, empresas e
faculdades.
Naquele cenário marcado no final de mês passado por uma das
cenas mais bárbaras da história
social paulistana -a matança
dos moradores de rua-, ocorre,
ao mesmo tempo, o melhor exemplo disponível de articulação comunitária da cidade.
Há 13 anos, um grupo de indivíduos, todos fora do governo, iniciou um movimento contra a veloz deterioração da região -um
caminho que parecia sem volta.
Chamaram arquitetos e especialistas para estudar as soluções encontradas em Nova York, Berlim,
Roma, Buenos Aires e Barcelona.
Sensibilizaram autoridades para
a importância de as cidades terem os seus centros históricos respeitados. Conseguiram mudar
leis e criar programas de incentivo fiscal.
Na pior das áreas, a chamada
"cracolândia", dominada pelo
crack, uma estação de trem virou
uma das mais qualificadas salas
de concerto do mundo. O local em
que funcionava o Deops, um dos
símbolos da barbárie, virou um
museu. Ali, na terça passada, por
exemplo, foi inaugurada uma exposição com alguns dos quadros
que refletem o que há de melhor
na arte moderna brasileira.
Na frente do antigo Deops, um
prédio passou a abrigar uma escola de música. A poucos metros
dali, surgiu, há alguns anos, a nova Pinacoteca, na frente da qual a
estação da Luz se prepara para
ser um memorial dedicado à língua portuguesa e o local de entroncamento de vários tipos de
transporte. Não é pouco que um
lugar povoado pelo crack comece
a se notabilizar pela beleza das
artes.
Essas são apenas intervenções,
algumas das quais em parceria
com a iniciativa privada, conduzidas pelo governo estadual, cujas
repartições estão se mudando para o centro. Montou-se até mesmo
um gabinete do governador.
A Petrobras, o Banco do Brasil e
a Caixa Econômica Federal ergueram centros culturais ou
apoiaram projetos de reforma de
imóveis; está em reforma, também com finalidade cultural, a sede dos Correios.
A prefeitura se mudou para o
viaduto do Chá e a sua antiga sede vai virar um museu. Quase todas as secretarias municipais se
mudaram para o centro. Um empréstimo internacional (BID) assegura que, nos próximos anos,
haverá mais melhorias, como a
reforma de parques, viadutos e
praças, além de mais programas
sociais.
Se alguém tiver de estudar como uma política pública pode gerar resultados, basta analisar a
engenharia administrativa do
centro. Como tudo o que é consistente, demora, passa de um governo para outro e, mais, exige as
seguintes peças: comunidade articulada, com apoio acadêmico e
atuação em rede da prefeitura,
condutora principal, com as mais
diversas peças do governo estadual e da União.
O PT de Marta pode se vangloriar dos resultados e não estará
iludindo ninguém. Mas o PSDB
de Serra também pode se orgulhar. Ambos, porém, devem reconhecer que, sem a mobilização
comunitária, o governo não teria
de que se vangloriar. Essa falta de
autoria personalizada explica por
que a recuperação do centro não
é um dos principais tópicos da
propaganda eleitoral. É o que de
melhor se fez e o de que menos,
por enquanto, se fala.
Na região em que São Paulo
nasceu como uma escola, está
sendo produzida a melhor lição
de inteligência comunitária -a
começar, aliás, do revigorado Pátio do Colégio.
PS - Um dos melhores presentes
já dados à cidade de São Paulo foi
a coleção de arte moderna da família Nemirovsky. Cedida à Estação Pinacoteca, que fica no prédio
do antigo Deops, dela faz parte,
por exemplo, o quadro "Antropofagia", de Tarsila do Amaral, que
agora integra a mostra "Mestres
do Modernismo". É, no mínimo,
ótimo pretexto para fazer a visita
ao centro e aproveitar para checar a consistência desta coluna.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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